Não há príncipe em uma democracia

“O Príncipe”, lançado em 1513, teve uma recepção inicial modesta e foi ignorado por seus dedicatários, os Médici. Mas, logo em seguida, gerou controvérsia. O cardeal inglês Reginald Pole (1500–1558) julgou-o escrito “pela mão do demônio”, o que, segundo Jean-Jacques Chevalier, pode ter inspirado, na Inglaterra, o apelido “Old Nick” (Velho Nicolau) para o diabo, numa possível alusão ao prenome de Maquiavel.
A Reforma Protestante e as guerras religiosas condenaram tanto o manuscrito quanto seu autor. Em 1557, o Papa Paulo IV o denunciou, e o Concílio de Trento o incluiu no “Index”. Na França, o escritor foi associado a Catarina de Médici e sua corte de italianos “maquiavélicos”, responsabilizados pelo Massacre de São Bartolomeu em 1572, de tal modo que protestantes e jesuítas passaram a vê-lo como uma figura sombria, quase satânica.
Apesar de sua má reputação, o livro cativou os absolutistas e foi até utilizado na formação de Luís XIV. Com o Iluminismo, houve uma tentativa de reinterpretá-lo. Rousseau ofereceu uma explicação que, para Chevalier, era tão brilhante quanto falsa: a de que Maquiavel pretendia “informar e prevenir os povos” sobre os artifícios dos tiranos. Essa nova perspectiva influenciou, em 1787, a construção de um monumento honorífico a Maquiavel em Florença, próximo ao Panteão dos italianos ilustres como Galileu, Michelangelo e Rossini.
Mas o texto seguiu sua própria lógica, sua “gênese”: um guia “a serviço do absolutismo”, como o classifica Chevalier. Essa característica levou à sua associação com Napoleão, visto como a mais perfeita “realização do príncipe maquiavélico”. Benito Mussolini o vinculou ao fascismo, elogiando o autor. Embora a ascensão do nazismo também fosse considerada um “aspecto do maquiavelismo”, a verdadeira “vitória” dos ensinamentos nele contidos seria atribuída a Stalin, que mantinha “O Príncipe” à cabeceira.
A ciência política reconhece Maquiavel como o primeiro pensador a proclamar a autonomia da política, contribuindo para a formação dos Estados Nacionais. Contudo, apesar do fascínio (anacrônico) que alguns ainda cultivam por sua doutrina, as lições de Maquiavel não se adequam a um líder ou detentor de poder em um Estado Democrático de Direito. Afinal, se a natureza humana é ingrata e enganadora, deveria o governante ser astuto e inclemente? Seria a governança apenas uma questão de ter força suficiente para conquistar e conservar o poder? A aparência e a reputação são mais importantes do que a verdade sobre o caráter do estadista?
Essa visão ardilosa, autoritária e cínica de liderança, que prioriza a manutenção do poder acima de considerações éticas, é incompatível com os princípios constitucionais de um Estado democrático, cuja formulação histórica sucede a doutrina absolutista. A democracia, recuperada dos gregos e aperfeiçoada, especialmente após a Revolução Americana, baseia-se na vontade do povo para a escolha de seus dirigentes, na confiança mútua entre governantes e governados, na transparência da administração e no respeito aos direitos individuais.
Ademais, e finalmente, apesar de sua propalada perspicácia política, Maquiavel esteve do lado perdedor em sua própria trajetória. Banido de sua amada Florença, ele suplicou um cargo aos Médici. Seu modelo de “príncipe virtuoso”, César Bórgia, perdeu seu Estado e teve um fim lamentável. Foi dessa posição de impotência que Maquiavel escreveu, paradoxalmente, sua obra mais famosa, propondo um poder absoluto cuja aquisição e sustentação, para ele, dependiam da força e da velhacaria. Para o nosso tempo, Maquiavel não é um mestre na arte política; definitivamente não para uma democracia, onde não há príncipes.
EVANDRO PELARIN
Juiz da Vara da Infância e Juventude de Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às terças-feiras