A rosa que não pode murchar
Pensemos naquelas manhãs de agosto de 1945. O sol, que deveria anunciar o dia, trouxe consigo um segundo sol, artificial, monstruoso

Oitenta anos se passaram. Por todo esse tempo, a terra em Hiroshima e Nagasaki viu as cerejeiras florescerem, cobrindo de delicadeza rosa uma memória indelével de horror. A efeméride não é mera data no calendário; é um grito silencioso que ecoa através das décadas, uma cicatriz aberta na consciência da humanidade. Uma lembrança obrigatória do que jamais deve se repetir.
Pensemos naquelas manhãs de agosto de 1945. O sol, que deveria anunciar o dia, trouxe consigo um segundo sol, artificial, monstruoso. Um clarão que não iluminou, mas cegou para sempre. O calor que não aqueceu, mas vaporizou vidas em segundos. O vento que não refrescou, mas carregou a morte invisível da radiação, semeando sofrimento por gerações. Cidades transformadas em cinzas, sonhos reduzidos a sombras impressas nos muros, famílias despedaçadas num instante. Não foram somente alvos militares; foi a própria humanidade que ali foi ferida de morte.
Vinicius de Moraes, o poeta do amor e da dor, capturou essa agonia cósmica em versos imortais, na “Rosa de Hiroshima”. Ele não fala da flor de pétalas suaves, mas de uma rosa grotesca, nascida da destruição absoluta: “Pensem nas crianças | Mudas telepáticas | Pensem nas meninas | Cegas inexatas | Pensem nas mulheres | Rotas alteradas | Pensem nas feridas | Como rosas cálidas.”
Essa rosa “cálida” — quente de radiação mortal — é o símbolo máximo da perversão do intelecto humano. Transformamos o átomo, a unidade básica da criação, em instrumento de aniquilação. A bomba nuclear não é uma arma como outra qualquer. É a negação da vida, o apocalipse contido em silos e submarinos. Seu poder destrutivo transcende fronteiras, gerações, ideologias. É um problema existencial para toda a humanidade, uma espada de Dâmocles pendurada sobre cada um de nós.
E o que vemos hoje? O mundo não aprendeu. As tensões geopolíticas são brutais, mais agudas e perigosas do que em muitas décadas. Novos e velhos conflitos escalam, a retórica belicosa inflama os ânimos, e a sombra da guerra nuclear, que parecia relegada ao passado da Guerra Fria, volta a assombrar os noticiários. A existência de cerca de 12.250 ogivas nucleares espalhadas pelo globo não é um triunfo da segurança, mas um monumento à nossa loucura coletiva e ao fracasso da diplomacia. Cada uma delas é uma semente daquela rosa hedionda que Vinicius descreveu.
Homenagear as vítimas de Hiroshima e Nagasaki vai além do luto. É um ato de rebeldia contra o esquecimento; é tocar naquela cicatriz e sentir a dor como um alerta permanente. É olhar para os hibakusha, os sobreviventes que carregam no corpo e na alma as marcas daquele dia, e ouvir seu testemunho silencioso: “Isso não pode acontecer de novo”.
O verdadeiro tributo não está somente em flores depositadas nos memoriais da Paz e sim na coragem de exigir, incansavelmente, o desarmamento nuclear total. Está em pressionar líderes a buscarem soluções pacíficas, a desinvestirem na morte e investirem na vida. Está em não normalizar a ameaça nuclear como mera do xadrez geopolítico.
Que a rosa de Hiroshima, aquela rosa feita de dor e radiação, possa murchar de vez para sempre. Que seu lugar seja tomado pelas verdadeiras rosas — e pelas cerejeiras — que florescem na paz, e que a memória das vítimas nos guie não pelo ódio, mas por uma determinação férrea. Desejamos paz. Exigimos o fim das armas nucleares. Não para nós, mas para todas as crianças, meninas, mulheres e homens que merecem um futuro sem o espectro da aniquilação. Amanhã precisa existir. Em Hiroshima, em Nagasaki, em toda parte. Sempre.
PROF. DR. JOÃO PAULO VANI
Presidente da Academia Brasileira de Escritores (Abresc), é pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da USP. Escreve quinzenalmente neste espaço aos sábados