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Afroconveniência de cada dia

Mecanismos criados para inclusão de pessoas negras não alcançam muitas pessoas negras reais

por Nayara Ferreira
Publicado em 28/11/2025 às 19:23Atualizado em 30/11/2025 às 14:07
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Recentemente, o presidente do Brasil indicou mais um homem para ocupar uma cadeira no Supremo Tribunal Federal, afrontando de forma explícita a necessidade histórica da indicação de uma mulher negra. E, como modo de “acalentar” o movimento negro, o indicado se autodeclara pardo, como quem tenta dizer “eu sou um de vocês”. Mas será que é mesmo?

Esse episódio reacende o debate sobre Afroconveniência , o uso estratégico da identidade racial quando isso proporciona vantagens políticas, institucionais ou simbólicas. Em um país estruturalmente racista, a negritude não é uma identidade opcional. Ela é vivida no corpo, nas oportunidades negadas, na violência cotidiana e na leitura social imposta desde o nascimento. A apropriação superficial dessa identidade enfraquece lutas históricas e distorce o propósito das políticas de inclusão.

No Brasil, ser negro não é só ter ascendência negra, é ser socialmente reconhecido como negro. Quando pessoas brancas passam a ter acesso facilitado a políticas públicas e ações afirmativas criadas para reduzir séculos de desigualdades impostas à população negra, desigualdades iniciadas no período escravocrata, que relegou milhões de pessoas negras à margem da sociedade, evidencia-se a distorção do sistema. Indivíduos socialmente brancos, sem vivência do racismo, têm se apropriado de políticas destinadas à população negra, esvaziando o propósito reparatório dessas medidas.

Assim, observa-se que os mecanismos criados para inclusão de pessoas negras não alcançam muitas pessoas negras reais; enquanto isso, pessoas de fenótipo branco conseguem acessar esses mesmos mecanismos com uma simples autodeclaração. Isso é a própria reprodução do privilégio dentro da política de reparação.

Ao permitir que indivíduos não racializados como negros ocupem espaços destinados à população negra, o Estado e as instituições esvaziam a função reparatória das ações afirmativas. O que deveria promover equidade acaba fortalecendo a manutenção do status quo: brancos ascendem, enquanto pessoas negras, sobretudo as retintas, permanecem enfrentando barreiras severas.

E enquanto isso, o país segue sem uma única mulher negra no STF, reafirmando o que o racismo estrutural e institucional repete diariamente às mulheres negras: “a vocês, só resta a base desta pirâmide.”

Nayara Ferreira

Advogada. Coordenadora da Comissão de Direito do Consumidor na OAB Rio Preto. Colunista na CBN. Integrante dos coletivos Mulheres na Política e Empodera.