As marcas que vencem o tempo
Minhas palavras são cicatrizes no tempo, marcas abertas por vivências, ausências e silêncios

Eu me lembro bem, como se fosse ontem, ainda menino, de revirar uma velha lata de ferro de biscoito da marca São Luiz, em formato de lancheira, que meu pai guardava com cuidado — herança de minha avó —; está lata consumida pelo tempo, mostrava o que o tempo havia feito com ela; com leves amassados e muito enferrujada, parecia mais um cofre onde ali guardava-se um tesouro de família — e o era —; lá dentro, o tempo repousava: fotos desbotadas, monóculos, fragmentos de histórias esquecidas, alguns negativos revelados e um velho álbum de fotos da minha infância. Volta e meia ficava olhando aquelas imagens, perguntando quem eram aquelas pessoas; sem saber, eu já buscava minhas raízes, mesmo sem entender o que era pertencer, era como se algo em mim — ancestral, silencioso e antigo — me puxasse para dentro daquelas imagens, como se eu quisesse ouvir as vozes por trás dos sorrisos desbotados onde cada rosto era um mistério, cada olhar, uma semente que eu queria plantar em mim; a ancestralidade que reside em mim já ali, deixava minhas primeiras marcas no tempo.
Ali ficava horas e mais horas vislumbrando o passado, vivendo memórias em que eu nem fazia presença, tentando imaginar como seria a vida, os usos e costumes e via a vida como quem vê ela em câmara lenta, em preto e branco, quiçá algumas apagadas e desgastadas pelo tempo, mas firmes e fortes cumprindo seu papel de perpetuar os que não estavam mais aqui.
Hoje, reflito, e espero que um dia serei também apenas memória, e haverá saudade como há em mim, eu estarei em alguma fotografia, em trechos de um jornal amarelado, em um livro na estante, e, talvez alguém, um dia, me procure como eu procurei meu passado, talvez um bisneto ou tataraneta buscando saber quem era aquela figura emblemática, com roupas de época, que insistia em transformar sentimento em escrita.
Confesso sinceramente, que não escrevo por vaidade, escrevo porque tenho medo de desaparecer, como diz a tradição mexicana, a verdadeira morte chega quando ninguém mais lembra de nós.
Minhas palavras são cicatrizes no tempo, marcas abertas por vivências, ausências e silêncios, mas a escrita que deixo... Ah essa é monumento; é o que permanece quando tudo o mais se desfaz; se as palavras doem, a escrita cura; se as palavras passam, a escrita resiste, porque o que escrevo não é só memória, é legado, e, enquanto o esquecimento não me alcançar, sigo escrevendo para que o tempo me leve, mas não me apague, e que toquem meus netos, bisnetas e vá até o infinito e mesmo que eu não os veja crescer, enquanto o esquecimento não chega, sigo escrevendo porque escrever é gravar na alma do mundo as marcas que vencem o tempo.
Gilson Ribeiro
Contador, cronista, poeta e membro da Academia Maçônica de Letras e Cultura do Noroeste Paulistass