Eu também não gozei
O Dia dos Pais, ano após ano, evidencia o óbvio: a maternidade solo é cruel

Todo ano, o Dia dos Pais escancara dois fatos sociais absurdos: a maternidade solo e o aborto paterno. Sim, sejamos honestos nas palavras: o chamado “abandono” paterno, na realidade, trata-se de um aborto. É a interrupção deliberada da presença, do cuidado e da responsabilidade.
Mascaramos a gravidade desse problema porque a sociedade, historicamente, tende a amenizar as situações quando se trata de homens. A completa irresponsabilidade masculina para com seus filhos — gerados com amor ou não, pouco importa, pois, se para a mulher falássemos apenas de gozo e amor, pouquíssimas crianças teriam nascido — é histórica e constante.
Há um livro (que virou filme) muito importante, da escritora Letícia Bassit, intitulado "Eu Também Não Gozei", que mostra como é perversa a ideia de criminalizar o prazer feminino, atribuindo à mulher a única e total responsabilidade pela concepção. Essa lógica inevitavelmente se converte em culpa: o corpo é seu, e a culpa também. Outro corpo nasce, e a mulher, sozinha, carrega o peso material, emocional e social dessa vida. Quão imensa é a chegada de outra pessoa ao mundo e quão violento é responsabilizar, culpando, apenas uma pessoa: a mãe.
Apesar do patriarcado, a maternidade solo é semente forte, nutrida pela sororidade. Mulheres e crianças enfrentam o cotidiano dilacerante do neoliberalismo: trabalho dentro de casa, trabalho fora de casa, levar e buscar, pagar babá, transporte, convênio médico, terapia, alimentação, lazer, roupas, sapatos, fazer tarefa, educar, contar histórias, comprar livros, monitorar o uso de telas, ofertar amor, falar com paciência... e sobreviver.
É uma carga pesada demais para carregar sozinha. E isso sem mencionar as idas à defensoria pública, os processos por atraso de pensão, as audiências desgastantes e as mensagens no WhatsApp em tom de ameaça: “Você não consegue sustentar a criança com a pensão? Então vou pedir a guarda dela.”
Independente dos valores morais que inundam a discussão, o Dia dos Pais, ano após ano, evidencia o óbvio: a maternidade solo é cruel. A tripla, quádrupla, até quíntupla jornada de trabalho adoece mulheres. Quem não solta as mãos das mães são outras mulheres — também sobrecarregadas — que, nutridas de sabedoria e experiência, sopram fôlego e cuidado no dia a dia. Nunca foi simples educar, mas, na era digital, crianças exigem atenção redobrada, e essa conta não fecha.
A responsabilidade paterna não é opcional: é condição para a manutenção da vida. Cuidar dói, exige tempo, energia, renúncias — mas, quando compartilhada, a dor se torna menos cruel e o peso, mais suportável. O masculino precisa assumir o que lhe cabe, abandonar a imaturidade que posterga e a negligência que destrói. É preciso amadurecer, compreender e agir.
Será que um dia chegaremos ao Dia dos Pais sem precisar expor a sobrecarga materna? Quando vamos, enfim, viver em um mundo onde cuidado e criação sejam partilhados de forma igualitária? A resposta, por enquanto, ainda parece distante.
Aline Stones
Professora, pedagoga e mestra em educação. Militante decolonial/anticolonial e membro do coletivo feminista ‘Mulheres na política’, de Rio Preto.