Diário da Região

I.A., biometria e o preço pago pelos idosos

Golpes com IA e biometria atingem aposentados e expõem um déficit democrático: acesso sem proteção não é inclusão

por Dra. Ana Cláudia Delfino
Publicado em 26/10/2025 às 03:00
Ana Cláudia Delfino - Advogada Previdenciária- Comissão de Direitos Humanos da OAB-SJRP (Divulgação)
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Ana Cláudia Delfino - Advogada Previdenciária- Comissão de Direitos Humanos da OAB-SJRP (Divulgação)
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Golpes digitais contra aposentados e pensionistas explodiram nos últimos meses. Rostos e vozes clonados por softwares, “atendentes” que se passam por INSS e bancos, biometrias falsas e aplicativos que capturam dados transformaram a promessa de segurança em medo. Quem mais sofre é o idoso brasileiro — justamente quem mais confia nas instituições e tem mais dificuldade em lidar com barreiras tecnológicas. O resultado é exclusão, perda de renda e violação de direitos básicos.

Se a democracia pressupõe acesso, voz e participação, há um déficit quando o Estado e o mercado empurram o cidadão para canais digitais sem proteção efetiva. A Constituição de 1988 estabelece, no art. 170, que a ordem econômica se funda na valorização do trabalho humano e na justiça social, assegurando a todos uma existência digna. Quando a tecnologia e o sistema financeiro se sobrepõem ao valor da pessoa, esvazia-se o sentido do Estado Democrático de Direito. Como lembra Hannah Arendt, a essência dos direitos humanos é “o direito a ter direitos”: negar acesso seguro é, na prática, negar cidadania.

No cotidiano, isso aparece em três frentes. Primeiro, a fragilidade informacional: mensagens e sites falsos replicam a linguagem oficial e induzem autorizações de empréstimos e mudanças cadastrais. Segundo, a fragilidade técnica: biometrias e “selfies” podem ser forjadas; o idoso, com limitações naturais, erra um clique e perde o benefício. Terceiro, a fragilidade institucional: falta resposta rápida, canais presenciais confiáveis e protocolos claros para reverter fraudes sem transformar a vítima em suspeita.

Do princípio da dignidade humana derivam deveres de respeitar, proteger e promover direitos, como afirma Ingo Sarlet. Isso implica políticas públicas e obrigações regulatórias: autenticação forte desenhada para pessoas idosas (com opção presencial garantida), verificação humana antes de operações sensíveis, auditorias de Inteligência Artificial e biometria, comunicação clara e acessível, responsabilização objetiva de quem lucra com o sistema e prioridade processual para devolver valores e restabelecer benefícios. Educação digital é importante, mas não pode substituir o dever institucional de proteger.

Os aposentados de hoje sustentaram famílias, cidades e o próprio pacto democrático. Permitir que envelheçam sob cerco de golpes digitais é aceitar uma nova forma de exclusão. Proteger os idosos é proteger a democracia. Tecnologia sem ética é ferramenta de opressão; tecnologia a serviço da vida é política de Estado. A escolha é nossa — e ela se mede na próxima senha, no próximo “ok” e no próximo idoso que não pode esperar.

Dra. Ana Cláudia Delfino

Advogada especialista em Direito Previdenciário, com atuação focada em planejamento e justiça social. Membra da Comissão de Direitos Humanos da 22ª Subseção da OAB/SP