Múltiplos Gustavos

Gustavo Rubio Cesta, médico com um futuro promissor na área de alta performance, com 36 anos de idade, veio a falecer na cidade de São Paulo. Após a declaração da morte encefálica, sua esposa e seus familiares doaram vários órgãos para transplantes, entre eles, córneas, fígado, rins, ossos, tendões e outros.
No Brasil, somente é permitida a doação de órgãos, tecidos e partes do próprio corpo vivo, feita por quem seja capaz, desde que se trate de órgãos duplos, como os rins ou partes renováveis do corpo humano, que não coloquem em risco a vida ou a integridade física e que também não comprometam as funções vitais do doador. O procedimento será realizado em estabelecimentos de saúde públicos ou privados credenciados, assim como por equipes médicas especializadas.
Quando, no entanto, se tratar de doação post mortem, há necessidade da comprovação da morte encefálica, com a juntada dos exames realizados para sua confirmação e da autorização do cônjuge ou parente em linha colateral, ou reta até o segundo grau.
Nem sempre, porém, ocorre a doação de órgãos. Após o evento morte, familiares são consultados a respeito da autorização para doar os órgãos do parente. É, sem dúvida, um momento crucial e que pode fazer prevalecer o sentimento altruísta ou o silêncio que acompanha a própria morte emudecida na vala da impotência.
Pois bem. Confirmada a morte encefálica pelos exames neurológicos realizados por dois médicos não participantes das equipes de captação ou transplante, com aptidões específicas, faz-se a comunicação à Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos do Estado, que indicará o nome do receptor, devidamente cadastrado.
É muito difícil para a família decidir a respeito da doação de vários órgãos e tecidos de um ente que faleceu, às vezes prematuramente. Na realidade, o sentimento que aflora de imediato é para que fique intocável o cadáver, de tal forma que ele represente sempre a imagem última do ente falecido. Se o homem ainda não se encontra preparado para a vida, muito distante se encontra da morte. Daí o dilema crucial em autorizar a retirada de órgãos.
Se o parente, em vida, deixou transparecer que tinha intenção de fazer a doação de seus órgãos, a decisão fica mais fácil. Os responsáveis pela autorização não se inibirão e, prontamente, assinarão o termo autorizativo. Do contrário, sempre ocorrerá uma junta familiar para decidir a respeito da doação. É sempre um momento difícil porque concorre com o evento morte, em que, por ironia, o paciente ainda registra batimento cardíaco, mesmo com a declaração da morte encefálica.
A disponibilidade do corpo tem seus limites e somente poderá ocorrer quando, para fins terapêuticos e humanitários, ficar evidenciado o benefício. Sacrifica-se um bem em favor de outro, levando-se em consideração o progresso das técnicas médicas que possibilitam uma reposição com considerável margem de sucesso.
Descobre-se, com o incessante avanço das pesquisas, que o corpo humano é um repositório infindável de órgãos, com a possibilidade de doá-los e recebê-los, sem conhecer o receptor beneficiado. E, no caso específico da esposa e parentes de Gustavo, foi um ato revelador de extrema solidariedade que se traduz por um profundo sentimento de alteridade, que transcende a natureza humana, merecedor de todo respeito e admiração, além de projetar uma sociedade mais humanizada e empática. Os pacientes beneficiados levarão a vida adiante com eterna gratidão.
Vale a pena lembrar o verso do poeta Renato Castelo Branco: “posso partir, porque já semeei minhas sementes. Podes plantar meu corpo no ventre do mundo”.
EUDES QUINTINO DE OLIVEIRA JÚNIOR
Promotor de justiça aposentado, advogado, membro da Arlec. Escreve quinzenalmente neste espaço aos sábados