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O legado de Glória Maria no combate ao racismo

Glória Maria mostrou que o silêncio diante do preconceito é também uma forma de perpetuá-lo

por Vitória Marques de Oliveira Cardoso
Publicado em 07/11/2025 às 19:25Atualizado em 08/11/2025 às 09:49
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Glória Maria foi muito mais do que uma jornalista brilhante, foi uma mulher negra que ocupou espaços em um tempo em que quase ninguém como ela aparecia na televisão e em outros meios de comunicação.

Fora das câmeras, protagonizou um gesto histórico de enfrentamento ao preconceito racial ao recorrer à Lei Afonso Arinos, em um ato de coragem que ecoa até hoje e se tornou símbolo de resistência.

Promulgada em 1951, a Lei Afonso Arinos foi o primeiro marco legal brasileiro a reconhecer o racismo como infração, ainda que de natureza contravencional, pois até então o preconceito racial era tratado como um problema moral e, muitas vezes, nem isso, já que a sociedade preferia ignorar o tema, tornando inúmeros episódios de discriminação banais e silenciosos.

Quase vinte anos depois, em 1970, Glória Maria fez uso dessa lei após ser impedida de entrar pela porta da frente de um hotel no Rio de Janeiro por causa de sua cor. Foi a primeira pessoa no Brasil a invocá-la judicialmente, e seu ato de coragem impulsionou outras pessoas a denunciarem casos de racismo, abrindo caminho para reformas legislativas que culminaram na criminalização do racismo como crime inafiançável e imprescritível pela Constituição de 1988.

Glória Maria mostrou que a lei existe para ser aplicada e que o silêncio diante do preconceito é também uma forma de perpetuá-lo, e em vez de se calar, transformou indignação em atitude e nos ensinou que resistir também é um ato jurídico.

Apesar dos avanços, o racismo ainda se manifesta nas estruturas sociais e institucionais, disfarçado em “sutilezas” cotidianas. Relembrar Glória Maria é mais do que prestar homenagem, é reafirmar compromisso, pois seu gesto evidenciou que as leis precisam acompanhar o tempo e a realidade social.

O ato de Glória Maria revelou que a coragem individual pode gerar mudanças coletivas e que cada geração tem o dever de atualizar e fortalecer o Direito para que ele permaneça vivo, acessível e humano.

O Brasil que queremos depende exatamente disso: de vozes que, como a dela, transformam a dor em luta e a luta em justiça.

Vitória Marques de Oliveira Cardoso

Advogada, pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal, com atuação nas áreas Criminal, Previdenciária e de Família. Coordenadora da Comissão da Advocacia de Guapiaçu, da 22ª Subseção da OAB de São José do Rio Preto/SP.