Diário da Região
Artigo

O privilégio de envelhecer

Envelhecer não é apenas acumular rugas, mas aprender a descobrir um motivo para seguir

por Jocelino Soares
Publicado em 28/09/2025 às 03:05
Jocelino Soares (Jocelino Soares)
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Quando menino, na fazenda onde cresci, quase todas as famílias tinham horta no fundo do quintal. Ela era protegida por cerca de bambu. Era nela que as ramas de abóboras e de chuchu, se penduravam. Os tenros brotos das abobreiras também conhecidos por cambuquira eram presenças certa no fogão a lenha. Para quem não conhece, é a ponta da rama da abóbora.

Minha mãe, de mãos ligeiras, refogava com alho socado no pilão, cebola bem miudinha e um fio de banha de porco. O cheiro tomava a casa inteira e abria o apetite até do mais preguiçoso. Não era comida de luxo, era de necessidade. Muitas vezes a carne faltava, o feijão era pouco, mas a cambuquira estava lá, generosa, crescendo nas cercas, se espalhando pelo quintal. Graças a ela, ninguém ia dormir de estômago vazio.

Hoje, quando vejo aquele broto verde na beira da estrada, é como se um pedaço da infância voltasse diante de mim. A memória é caprichosa: pode se esconder por anos, mas basta um detalhe simples — o aroma de uma planta, o som de um sino distante, a voz de um sanfoneiro — para que tudo retorne com nitidez. É nesse instante que entendo o privilégio de envelhecer. Só quem já percorreu muitos caminhos pode se dar ao luxo de se perder em lembranças tão antigas e tão vivas.

A vida se parece mesmo com uma roça. Quando jovens, passamos o tempo semeando, afoitos pela colheita. Na meia-idade, cuidamos da lavoura, carpimos o mato, espantamos as pragas e rezamos para não perder a safra. Já na velhice, a enxada pesa, o corpo pede descanso, mas o coração se enche de gratidão. É tempo de colher o que foi plantado, mesmo que sejam apenas memórias. Se o corpo já não acompanha o ritmo dos mais novos, a alma se consola na fartura invisível do passado. Muitas vezes, ao lembrar, sinto um nó na garganta e, como disse o poeta, dói — sem doer.

O broto da cambuquira me ensina isso: a cada dia a vida oferece um recomeço. Envelhecer não é apenas acumular rugas, mas aprender a descobrir, no simples, um motivo para seguir. Se ontem me encantava o brilho da juventude, hoje me basta o verde humilde dessa planta que insiste em nascer à beira do caminho. Ela não pergunta a quem serve: apenas cresce, oferece-se e transforma o pouco em banquete.

Talvez a sabedoria esteja justamente aí: em reconhecer que cada lembrança é um fruto maduro. E, se os olhos já não correm como antes, a alma se alimenta dessa colheita invisível — histórias que não se acabam nunca.

Jocelino Soares

Artista plástico Pós-graduado em Arte-educação, membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura.