O tempo em nós
A forma como cada povo escolhe contar sua história revela sobre sua identidade

O tempo e a sua passagem são as bases da História, e compreender as causalidades dessa dinâmica é o compromisso de quem se dedica a estudá-la. O fato histórico, o acontecimento, é apenas a face visível de uma rede de causas e consequências. Esse evento, muitas vezes reduzido às manchetes de jornais, sustenta também os acontecimentos que ainda virão. Pela necessidade de compreender e de preservar, escolhem-se as dinâmicas narradas, o que proporciona à sociedade o reconhecimento de si mesma, ainda que sob o olhar de quem a produz.
A História é sempre a narrativa de alguém sobre o mundo e sobre si. É, portanto, discurso, uma potente forma de construção e reconstrução. Somos seres narrativos e narrados, e é nesse movimento que nos encontramos e nos compreendemos. No entanto, a forma como cada povo escolhe contar sua história revela sobre sua identidade.
Na sociedade capitalista moderna e contemporânea, marcada pela conquista das Américas, predomina a ideia de evolução, como se as descobertas tecnológicas levassem necessariamente a patamares de desenvolvimento superiores. Nessa lógica, o passado não se integra ao presente: tende-se a compreendê-lo como atraso, algo a ser superado, vencido e até aniquilado. Surge, assim, uma contradição nesse modelo: aquilo que nos narra é também aquilo que nos nega.
Os povos originários, por sua vez, mantêm uma relação distinta com o tempo. Não se apartaram do todo nem negam o passado, porque sabem quem são. Entendem-se como parte da vida e da morte, tal qual os processos naturais, marcados pelas permanências e rupturas das horas que formam os dias; dos dias que constroem os meses; dos meses reunidos nos anos; e dos anos que sustentam a existência.
Somos natureza, e isso nos atravessa, mesmo quando fingimos não ser. Somos formados por ciclos, mas vivemos como se não fôssemos morrer. Essa força nos chama, mas amarramos nossos corpos a sistemas arbitrários, reduzindo a essência — também chamada de deus — ao desenvolvimento econômico vinculado à máquina, quando, na verdade, estamos sustentados em terra, água e ar. É no reconhecimento desse tempo natural que se dá o reencontro de cada um consigo mesmo e com aquilo que há de humano em nós.
Ingrid Zanata Riguetto
Bruxa, mãe, historiadora, escritora, professora e coordenadora de ações culturais. Dra. em Teoria Literária (UNESP), atua na interseção entre cultura, política e educação. Integra o coletivo Mulheres na Política.