Quase ninguém viu, mas reescreveu uma vida
O apoio da família nunca pode ser tratado como ato trivial. Em tempos em que a solidão se alastra como uma epidemia silenciosa entre os mais velhos, ele é uma forma de resistência

Nos últimos dias, a história de Valéria Cláudia Laboissieree Ulhoa — a professora aposentada de 77 anos que se formou no curso de Educador Político Social em Gerontologia da Universidade de Brasília — repercutiu na mídia e nas redes sociais como um sopro de otimismo.
Imagens da formatura, entrevistas bem-humoradas e a frase “Me sinto jovem!” correram o país, convertendo-se em símbolo de vitalidade.
Mas há um detalhe que passou despercebido para a maioria das pessoas que acompanharam essa história inspiradora.
Um detalhe tão simples quanto decisivo, e que talvez tenha reescrito não apenas esta biografia, mas também o sentido de muitas outras, caso seja imitado: a inscrição no curso não foi ideia de Valéria, mas de sua filha. Um gesto silencioso, sem holofotes, mas carregado de consequência.
O apoio da família nunca pode ser tratado como ato trivial. Em tempos em que a solidão se alastra como uma epidemia silenciosa entre os mais velhos, ele é uma forma de resistência.
Segundo dados do IBGE, mais de 17% dos idosos brasileiros vivem sozinhos; e um levantamento do Ipea aponta que cerca de 30% deles raramente recebem visitas de familiares. Em paralelo, cresce o número de idosos institucionalizados sem vínculo frequente com parentes — muitos dos quais relatam, em pesquisas qualitativas, sentir-se “esquecidos em vida”.
Nesse cenário, a decisão de uma filha em matricular a mãe na universidade ganha um peso imenso. Não é apenas incentivo acadêmico — é devolução de pertencimento. É dizer, sem precisar verbalizar: “Eu ainda vejo você, e acredito no que pode viver daqui para frente”.
O resultado, no caso de Valéria, foi a redescoberta de amizades, a reconquista da autoestima e a prova concreta de que o capital humano da terceira idade é vasto, mas frequentemente subutilizado.
O lema que ela carrega — “Resistir Sempre” — não se sustenta apenas na força individual. A resistência, para ser duradoura, precisa de alianças. Precisa que alguém abra a porta, que alguém insista, que alguém aponte um caminho quando a pessoa já não enxerga tantas estradas. A história de Valéria mostra que resistir também é um verbo que se conjuga em família.
Quantos outros talentos maduros, quantas experiências valiosas, quantos sonhos ainda não realizados permanecem estagnados porque lhes faltou apenas um gesto semelhante? A transformação que se viu na UnB não começou na sala de aula — começou na cozinha de casa, num instante em que uma filha decidiu não esperar que a vida empurrasse sua mãe, mas puxá-la pela mão.
É assim que se combate a invisibilidade. Com atos concretos, capazes de deslocar alguém da margem para o centro. Com a consciência de que o envelhecimento não é sinônimo de esvaziamento, e de que apoiar não é caridade — é um dever, e também uma forma de manter a própria sociedade viva.
Jurandyr Bueno
Jornalista e Relações Governamentais do Hospital de Base de São José do Rio Preto