Diário da Região
Painel de ideias

Daher: palavras suaves

Com palavras suaves e confiança de que nada na existência é banal, Daher se expressa qual mãe solitária a bordar em pano de prato belas flores em cores primárias

por ROMILDO SANT’ANNA
Publicado em 02/08/2025 às 21:06Atualizado em 12/08/2025 às 19:00
Romildo Sant’Anna (Romildo Sant’Anna)
Romildo Sant’Anna (Romildo Sant’Anna)
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“Quem tem ouvidos, ouve”. Tais palavras se alojam na “Parábola do Semeador” (Mateus, 13). Ecoando-lhe na mente em vagares emotivos, assim labora o multiplicador de mensagens do bem e fundas reflexões, o amigo doutor em medicina e escritor Wilson Daher. Caminha em passos lentos, vive contando até três neste mundo conturbado, eivado de vaidades e fanatismos odientos num faroeste caboclo sem Maria Lúcia. Transpira generosidades, igual por dentro a boas lembranças. Conclama por atitudes singelas, a eloquência dos silêncios, magnificências inventivas de grandes artistas. E lições inspiradoras de Sigmund Freud, Carl Jung, Jacques Lacan, Victor Frankl e Melaine Klein.

Daher é um humanista a revelar funduras das coisas superficiais. Concebeu textos de teatro como “O Processo de Ser” e “Feiramundo”, contos, novelas e ensaios acadêmicos. Entre eles, recordo-me do “Memorial de Uma Faxineira e “Outras Histórias Contadas e Recontadas”, “Ser o Que Sou: Isto é Possível?”, “Antes e Sempre”, “Diga Adeus ao Velho Aristóteles” e “Outros Dois Trágicos Momentos”, “Em Memória do Irmão Distante”, “Intuição, Evidência e Caos: Sinuosos Caminhos do Fato Científico” e o recente “Espectros”. Crescido nos eitos da terra vermelha e o suor dos campos, transpôs as pontes entre o sertão e o asfalto, a tradição, filosofias e modernidades.

Sem respostas finais, aborda gravemente as indagações dos que viveram muitos anos. Cito duas crônicas neste Diário. Em “O Encanto da Vida” encara solidões e a despedida: “Aninhado ao meu leito, penso no turbilhão de horas infinitas e, como não tenho a quem perguntar, pergunto a mim mesmo sobre o sentido disso tudo... à espera do previsível em hora imprevisível” (04.06.2025). Em “A Síntese”, observa: “Quatro ou cinco cronistas (entre os quais me incluo) ainda perseveram na delicada missão de manter viva a matéria da subjetividade, ao falar das emoções, da ancestralidade, da literatura e das revivências de suas raízes”. Em seguida, desculpando-se por suas “fantasias delirantes”, e focando as desumanizações da vida, humaniza um velho casaco postado no espaldar de uma cadeira (05.07.2025).

Com palavras suaves e confiança de que nada na existência é banal, Daher se expressa qual mãe solitária a bordar em pano de prato belas flores em cores primárias. Lida com os signos com mãos de bisavô-lavrador, pelo prazer do discurso, interlocução literária e atávico anseio de dar-se presente. Suas frases se insinuam como que saídas de cadernos espirais nas sentadas em bancos de uma Praça da Matriz. São sementes no cultivo de ideias e colheita de amigos. Seu ofício de escritor, com sabor de manga-rosa, são recordações encalacradas, nem sempre lembradas no ambiente prático, enrolado em presunções do sabe-tudo e algoritmos. Com bons ouvidos, assim o ouvimos (Wilson Daher, Macaubal, SP, 1938).

ROMILDO SANT’ANNA

Crítico de arte e jornalista. Livre-docente pela Unesp, é membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura (Arlec). Escreve quinzenalmente neste espaço aos domingos.