Diário da Região
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O esquecimento dos que já não lembram

Quantos 'Miltons' anônimos vivem em casas precárias, sem diagnóstico, sem acolhimento, sem nome?

por Jurandyr Bueno
Publicado em 03/10/2025 às 19:33Atualizado em 04/10/2025 às 09:55
Jurandyr Bueno (Jurandyr Bueno)
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A notícia de que Milton Nascimento foi diagnosticado com demência, divulgada por seu filho adotivo nesta semana, ultrapassa o campo íntimo. Ela nos convida, com a delicadeza que marca a própria obra de Milton, a olhar com mais atenção para uma ferida aberta no corpo social brasileiro: a negligência histórica com o envelhecimento, a precariedade do cuidado e o esquecimento dos que já não lembram.

A figura de Milton, um dos maiores nomes da música brasileira, dá rosto – e peso simbólico – a uma condição que atinge milhões de pessoas e segue envolta em silêncio. Segundo a OMS, cerca de 1,77 milhão de brasileiros vivem com algum tipo de demência, sendo o Alzheimer o mais comum. Com o envelhecimento acelerado da população, esse número deve mais que dobrar até 2050. Ainda assim, o tema permanece longe do debate público e fora das prioridades de saúde.

A razão não é apenas negligência institucional – é também cultural. No Brasil, envelhecer é tornar-se invisível. O cuidado com a velhice ainda é tratado como um problema doméstico, quase sempre entregue à exaustão das famílias. E quando se trata da demência, essa invisibilidade se aprofunda. O esquecimento de quem já não lembra vai além da perda cognitiva: é social, estrutural, orquestrado por uma sociedade que evita olhar para sua própria finitude.

É preciso dizer com clareza: o Brasil não possui uma política pública consistente, abrangente e efetiva voltada ao cuidado de pessoas com demência. Existem dispositivos legais, como o Estatuto do Idoso (2003) e a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (2006), mas nenhum deles dá conta, de forma integrada, das complexidades da condição. Faltam centros-dia especializados, formação de cuidadores, suporte psicológico às famílias, linhas de cuidado estruturadas na atenção básica e campanhas de conscientização pública.

Nesse vácuo, o cuidado recai sobre os ombros das famílias – e, sobretudo, das mulheres. Dados do IBGE mostram que mais de 75% dos cuidadores informais no Brasil são mulheres, muitas delas com idade entre 45 e 65 anos, que dividem essa função com atividades profissionais ou domésticas, quase sempre sem qualquer apoio institucional. São essas mulheres que sustentam, com afeto e resistência, o que deveria ser uma responsabilidade coletiva.

O gesto de Augusto Nascimento, ao tornar público o diagnóstico do pai, rompe esse silêncio. Seu ato não é apenas corajoso – é politicamente necessário. Ele dá nome a uma doença que apaga os nomes. Expõe um drama privado que, na verdade, é de todos. Quantos “Miltons” anônimos vivem em casas precárias, sem diagnóstico, sem acolhimento, sem nome? Passou da hora de refletirmos sobre a forma como o país lida com a perda da autonomia, da memória e da dignidade na velhice.

É hora de colocar a demência no centro das políticas públicas de saúde, ao lado de outras condições crônicas de alta prevalência. É hora de pensar em previdência digna, rede de apoio estruturada, capacitação profissional e acesso equitativo a diagnóstico e tratamento. Mas é, sobretudo, hora de desnaturalizar o abandono e repensar o pacto social que temos com a velhice.

Milton Nascimento não é apenas um artista consagrado. Ele é parte de quem somos, do que lembramos, do que sentimos. E mesmo agora, quando a lucidez se desfaz, sua presença continua a nos conduzir pelos caminhos mais profundos da alma brasileira. Que o país não cometa com ele – e com tantos outros – o erro de repetir o que o título deste artigo denuncia: o esquecimento dos que já não lembram.

Porque, hoje e sempre, amigo é coisa pra se guardar... do lado esquerdo do peito.

Jurandyr Bueno

É jornalista e Relações Governamentais do Hospital de Base de São José do Rio Preto