O Zoológico Espectaculoso da Justiça
A toga, que deveria pesar como símbolo de gravidade, anda servindo de fantasia carnavalesca para personagens que, em vez de argumentos, distribuem insultos

O Tribunal do Júri já foi pensado como espaço da solenidade máxima da Justiça. Um teatro sério, onde se decide sobre culpa e inocência, sobre a liberdade dos homens e os limites da civilização, com gravidade digna de corte clássica. Mas a cada semana ele se revela menos tribunal e mais picadeiro, menos rito e mais reality show. A toga, que deveria pesar como símbolo de gravidade, anda servindo de fantasia carnavalesca para personagens que, em vez de argumentos, distribuem insultos com a naturalidade de quem oferece balas em festa de criança.
Em Taguatinga, por exemplo, o promotor, tomado de lirismo zoológico e inspiração de momento, chamou a advogada de rata. Não que ela estivesse roendo provas ou tentando fugir por dutos de ventilação. Não. Era apenas uma tentativa de adjetivação zoológica mal disfarçada. E acrescentou que a defesa era sorrateira, ardilosa e covarde. Quem precisava de laudo pericial quando se tinha a zoologia aplicada à advocacia?
Poucos dias antes, em Belo Horizonte, outro representante do Ministério Público havia lançado mão da avicultura: “galinha garnizé” foi o título ofertado à advogada. E ainda sugeriu que ela poderia fazer um striptease no plenário. Era o júri ou o cabaré? Faltou apenas o canhão de luz e um saxofonista com chapéu panamá. Uma tentativa frustrada de homenagem ao galo do Atlético Mineiro, forte e vingador gestado nos anos 1930 como símbolo de bravura.
Sem dúvida, um insulto mais criativo que aqueles ouvidos num estádio de futebol. Mas, o resultado foi menos épico e mais galinheiro verbal, com direito a penas voando pelo ar do plenário. Se a cena fosse em Portugal, país onde o galo é ícone nacional, talvez a metáfora soasse patriótica; aqui, soou apenas cacarejo.
No Paraná, o vocabulário desceu mais alguns degraus. Em Cascavel, o promotor distribuiu adjetivos que fariam corar qualquer dicionário: safado, pilantra, bosta, frouxo. A sessão prometia encerrar-se não com a sentença, mas com papel higiênico. E não era a primeira vez: meses antes, no mesmo Estado, um colega de ofício havia redigido uma petição chamando advogado de cocô. Da tribuna à escrita, a criatividade parece ter encontrado na cloaca sua fonte de inspiração.
Manaus, em setembro de 2023, não deixou por menos. Lá, uma advogada foi chamada de cadela. E como se não bastasse o latido inicial, o promotor ainda acrescentou, com refinamento retórico, que a comparação era ofensiva não à doutora, mas à cadela. Aristóteles, patrono da retórica, talvez tivesse preferido não assistir à cena, para não ter que expandir sua Poética às baixarias de botequim.
E quando se pensa que o zoológico verbal já tinha esgotado suas jaulas, surge Goiás, em 2025, para mostrar que sempre cabe mais uma atração. O promotor declarou que só beijaria moças bonitas, e que, tecnicamente, a advogada presente não se encaixava nesse grupo. Juradas abandonaram o salão, por repulsa ou por solidariedade.
Afinal, não é todo dia que se vê um promotor confundindo tribunal com teste de Miss Brasil. A advogada acusou o promotor de assédio, relatou perseguição e ousou mencionar a cor da pele do acusador em um podcast. Resultado: sete anos de condenação. A ironia aqui é cruel: enquanto promotores podem chamar advogadas de rata, galinha, cadela e advogados de cocô, a defesa, se ousa falar em assédio ou perseguição, vê-se imediatamente enquadrada em calúnia, difamação e injúria, num combo penal irresistível.
E assim vamos, de norte a sul, construindo um zoológico verbal e os tribunais se transformando em palco de espetáculo grotesco. Ratos, galinhas e cadelas circulam com desenvoltura entre os autos, e excrementos lançados fora deles. Enquanto isso, a Justiça — aquela mesma, de olhos vendados e balança na mão — assiste, impotente, como mera figurante. E o público sai do fórum sem saber se presenciou um julgamento ou um ensaio geral para o próximo espetáculo do circo judiciário.