Rio Preto à luz de Crime e Castigo
Os que defendem anistia aos líderes dos ataques contra a democracia repetem a mesma lógica dos que ignoram as listas de boicote

Na última semana, um grupo de munícipes decidiu reeditar as listas de boicote que apareceram após as eleições de 2022. Agora, o alvo é um comerciante tradicional de Rio Preto, perseguido por supostamente ter comemorado a prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro.
A lógica por trás dessa prática é a mesma desmontada por Dostoiévski em Crime e Castigo: a ilusão de que algumas pessoas seriam moralmente superiores e, por isso, teriam o direito de violar regras e punir quem pensa diferente.
Raskólnikov, no romance, cria a teoria do “Homem Extraordinário”, alguém que poderia ultrapassar limites se acreditasse servir a um propósito maior. Os autores das listas repetem essa mentalidade, embora sem qualquer profundidade intelectual: acreditam que podem decidir quem merece trabalhar, quem deve ser punido e quem deve ser destruído economicamente.
É a versão grotesca, provinciana e contemporânea da arrogância do protagonista de Dostoiévski. Aplicam a lógica perversa de que “o fim justifica o meio”, como se tivessem autoridade ética para isso.
No livro, essa teoria leva ao assassinato; na vida real, leva à perseguição política, ao linchamento econômico e à destruição pública via WhatsApp. E tudo isso só acontece porque existe um elemento comum às duas histórias: a sensação de estar acima da lei nasce da ausência de consequência.
Raskólnikov desmorona porque é confrontado pelo espelho moral representado por Porfiri e pela compaixão radical de Sônia, que o empurra à confissão. Já os autores das listas riopretenses não enfrentam inquéritos, nem qualquer instância que os obrigue a olhar para a própria violência. A sociedade civil tenta. A democracia tenta. A imprensa tenta. Mas os intolerantes conseguem se manter no mesmo ciclo de delírio porque não há confronto moral, não existe uma instituição que os force ao espelho.
E aqui está a conexão mais incômoda: a sensação de estar acima da lei só existe quando ninguém impõe consequência. Essa omissão institucional funciona como um tranquilizante ético: impede qualquer reflexão, alimenta a fantasia de superioridade e transforma o fascismo cotidiano em prática recorrente.
“Crime e Castigo” mostra que a verdadeira punição é abandonar essa fantasia. E esse é exatamente o castigo que os autores das listas nunca enfrentaram, porque sua fantasia continua intacta graças à omissão institucional. Enquanto não houver responsabilização, não haverá sobriedade.
E sem sobriedade, o fascismo cotidiano se reproduz como se fosse um direito adquirido. E é aqui que a discussão sobre anistia entra de maneira direta e evidente.
Os que defendem anistia aos líderes dos ataques contra a democracia repetem a mesma lógica dos que ignoram as listas de boicote: acreditam que deixar o crime sem consequência é um gesto de pacificação. Não é. É um convite para a repetição.
A não punição das listas de 2022 permitiu que novas listas surgissem agora. A anistia aos golpistas faria exatamente o mesmo. Se não houve consequência ontem, por que haveria amanhã? Se o Estado não pune, o transgressor conclui que tem licença para avançar mais um passo.
A anistia, nesses casos, não é perdão. É autorização. É estímulo. É combustível para que outros “Homens Extraordinários” (ou outras “Pessoas de Bem”) se sintam legitimados a desafiar a lei em nome de sua própria fantasia moral.
A lição de Dostoiévski é brutal e atual: ninguém é extraordinário, ninguém está acima da lei e ninguém tem o direito de transformar delírios morais em instrumento de perseguição, em violência simbólica ou política.
É isso que Rio Preto precisa lembrar. E é isso que a democracia precisa defender. Antes que esses pequenos Raskólnikovs de WhatsApp acreditem, de vez, que o mundo lhes pertence
Beto Braga
É empresário