A ilusão dos sósias na era da pós-verdade
Na era da pós-verdade, as fronteiras entre o real e o encenado se dissolveram. O cidadão passou a habitar uma realidade de duplos

Jamais se mentiu com tanta tecnologia e jamais se acreditou com tamanha devoção. O verdadeiro precisa provar que existe e o falso basta parecer convincente. Quando Joseph Capgras, psiquiatra francês, em 1923, descreveu a “Ilusão dos Sósias”, talvez não suspeitasse que, um século depois, seu diagnóstico clínico se transformaria em sintoma cultural. Sim, grande parte da humanidade duvida do real e acredita em diferentes tipos de manipulações, especialmente as digitais.
No início do século XX, Capgras analisou o caso Madame M., mulher de meia-idade, sem antecedentes psiquiátricos, até o início do quadro de delírio crônico, centrado na convicção inabalável de que seu marido, seus filhos e vizinhos haviam sido substituídos por impostores idênticos em aparência, mas não em essência. A paciente não tinha alucinações, apenas sua consciência estava cindida.
Para Capgras, o fenômeno era uma tentativa de proteger o ego de uma experiência psíquica intolerável. O delírio, portanto, era produto de interpretação distorcida da experiência afetiva, uma ruptura com a familiaridade do real, como se o mundo tivesse se tornado uma encenação. O caso antecipou conceitos fenomenológicos do existencialismo, como o desalojamento do ser, estranhamento do mundo e desencaixe entre o eu e o outro.
O paradoxo da credulidade contemporânea é a expansão da mentira e do público, cada vez mais, disposto a consumir enganos, em um mundo de acesso à informação. A comparsaria entre quem engana e quem quer ser enganado ganhou robustez, assim como a fé no falso e a negação da realidade.
Apesar de estudos recentes de neuroimagem identificarem a desconexão entre o giro fusiforme (responsável pelo reconhecimento facial) e o sistema límbico (onde ocorrem as respostas emocionais), a tese de Capgras, psicologia social, política, cultura e tecnologia se articulam numa versão contemporânea do pensamento cartesiano da dúvida e da certeza, o conflito entre o que é visto e aquilo em que se crê.
O mundo, antes familiar, agora parece feito de cópias, algo irremediavelmente falso. No feed de notícias, uma figura pública sorri; na publicação seguinte, o mesmo rosto e a mesma voz aparecem adulterados. As imagens replicáveis e desumanizadas por tecnologias são responsáveis pela sensação de inconsistência da realidade.
O delírio coletivo de que figuras públicas teriam morrido e sido substituídas por sósias ou a percepção generalizada de rostos sem autenticidade emergem de fenômenos psicossociais e culturais, impulsionados pela desinformação compartilhada em larga escala nas redes sociais, reforçados por vieses de confirmação e bolhas digitais. A tecnologia nos deu olhos ubíquos, mas arrancou a intimidade que sustentava o reconhecimento.
Na era da pós-verdade, as fronteiras entre o real e o encenado se dissolveram. O cidadão passou a habitar uma realidade de duplos. A verdade é mais uma questão de fé do que de fato. E cá estamos, entre a nostalgia da autenticidade o ceticismo absoluto.
O que Capgras via como delírio individual, hoje é sintoma social: já não confiamos nos rostos que vemos. O real não morreu, apenas perdeu a credibilidade. A única cura possível é a restauração da confiança. Reconhecer o outro e a verdade é o primeiro passo para curar nossa era de impostores.
MARA LÚCIA MADUREIRA
Psicóloga Cognitivo-comportamental em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às quintas-feiras