Abandono de criança e o patrimônio genético
A Resolução nº 485/23, do Conselho Nacional de Justiça, clareou com novas luzes para encontrar uma solução para dirimir o conflito entre o direito à identidade da criança e o direito ao sigilo da mãe

Não com muita frequência, mas esporadicamente, a imprensa noticia o fato de a mãe ter abandonado o filho após o parto. Tal conduta, por si só, considerada crime no Código Penal, leva o cidadão a refletir a respeito e, ao mesmo tempo, vislumbra espaço para um salutar e construtivo debate em busca de políticas públicas necessárias para amenizar situação tão delicada. É de se atentar que não se pode emitir antecipadamente um édito condenatório em desfavor da mãe que, despreparada para a maternidade, ou até mesmo sem condições financeiras para suportá-la, tome a drástica decisão do abandono.
É difícil estabelecer os motivos que levam a mãe a tomar a decisão tão lamentável que, de regra, é censurável por todos. Com o aprofundamento do raciocínio em torno da questão, vê-se que, quando grávida, não optou pelo aborto. Nem mesmo pelo infanticídio, quando se encontrava sob a influência do estado puerperal. Não se pode concluir, portanto, que a genitora não desejasse o nascimento do filho, uma vez que venceu todas as etapas, desde a concepção até o nascimento com vida. Passou, com certeza, por inúmeras dificuldades, muitas de ordem socioeconômicas, outras morais, mas, mesmo assim, proporcionou o nascimento ao filho. Pode-se concluir, de forma paradoxal, que a entrega do filho a uma instituição apropriada, vem a ser uma atitude até responsável da mãe, revelando seu interesse em proporcionar ao recém-nascido melhores condições de vida. É um verdadeiro ato de amor, embora com requinte de absurdo. É melhor assim do que abandoná-lo clandestinamente, em condições indignas e subumanas.
Já tramitaram pela Câmara Federal projetos de lei, que não vingaram porque as propostas apresentadas corriam o risco de se atropelarem nas próprias pernas por tentarem dar um salto sem observar seus limites ao criar a figura do parto anônimo. A parturiente que optou pela entrega do filho será submetida a acompanhamento psicológico, isenta de qualquer responsabilidade civil ou criminal em relação ao filho e a sua identidade.
A incongruência da proposta legislativa reside justamente no sigilo de identidade da mãe que impossibilita ao filho o conhecimento de sua origem genética. Privar o filho de conhecer sua origem genética é negar a ele sua própria identidade biológica. Pode ser até que, futuramente, tenha necessidade de se submeter a transplante de medula óssea e, tateando pela escuridão de sua origem, vai se inscrever em bancos de doação, sem a mínima chance de tentar a compatibilidade entre os parentes. Da mesma forma não serão observados os impedimentos matrimoniais.
A Resolução nº 485/23, do Conselho Nacional de Justiça, clareou com novas luzes para encontrar uma solução para dirimir o conflito entre o direito à identidade da criança e o direito ao sigilo da mãe. Referido texto legal garante à gestante ou parturiente que manifestar de forma inequívoca o interesse de entregar o filho para adoção, o encaminhamento à Vara da Infância e do Adolescente para dar início ao procedimento judicial, ofertando a ela o atendimento por equipe interprofissional.
Todo o processo tramitará em segredo de justiça, oportunidade em que a gestante será informada sobre o direito ao sigilo do nascimento do filho, alcançando os membros da família extensa e o pai indicado, além de ser informada a respeito do direito da criança de conhecer sua raiz biológica, após os 18 anos, de acordo com o artigo 48 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Em perfeita sintonia com a ciência que valoriza conhecer a função que cada gene exerce no interior do corpo humano. Ter um DNA significa ler a informação genética e descobrir o código da vida.
EUDES QUINTINO DE OLIVEIRA JÚNIOR
Promotor de justiça aposentado, advogado, membro da Arlec. Escreve quinzenalmente neste espaço aos sábados