Às portas do inferno?
O início de minha espera de 2 horas e meia, um horror Dantesco, levou-me a uma reflexão literária baseada no tema do ingresso no Inferno

Numa manhã do final do verão europeu, cheguei mais uma vez ao Aeroporto da Portela, em Lisboa, Portugal, cujo nome oficial é, desde 2016, Humberto Delgado. Eu conheci o aeródromo em 1974, depois derrubado e reconstruído com rara infelicidade, pelo que tenho o direito adquirido de usar a velha denominação. A temperatura era amena, os ventos marítimos delicados e o sol brilhava com esplendor. Sentia-me bem. Despejado com ultraje no edifício principal por autocarro, mudei rapidamente de humor. Ademais, havia uma enorme aglomeração de passageiros desorientados, logo junto à escada rolante.
O modesto e anacrônico aeroporto está subdimensionado face a demanda atual; a infraestrutura sanitária é insuficiente; o local é imundo e os funcionários de imigração são escassos. As barreiras das filas de controle começavam bem mais adiante e havia uma grande confusão. Uma mulher logo diante a mim sentiu-se mal e foi deitada no chão, sem atendimento. O início de minha espera de 2 horas e meia, um horror Dantesco, levou-me a uma reflexão literária baseada no tema do ingresso no Inferno.
Virgílio, no Livro VI da Eneida, um poema épico de 19 a.C., trata da entrada do herói Enéas, filho de Vênus, no Reino dos Mortos, domínio de Plutão, onde busca encontrar o pai, falecido pouco antes. Segundo Virgílio, a porta de ingresso seria no Lago de Averno, um sítio vulcânico sujeito até hoje a manifestações sísmicas e situado ao norte de Nápolis, na cidade de Pozzuoli. Iniciada a viagem, conduzido por Sibilla, uma vidente inspirada por Apolo, o percurso foi afetado por aparições terríficas, como a Dor, a Doença, a Velhice, a Fome e a Guerra, além de diversos monstros. Virgílio usa a linguagem do mito na obra que antecede o Cristianismo.
Por sua vez, o poeta Dante Alighieri, já no século XIV, retomou a questão em seu poema épico, A Divina Comédia, que é dividida em 3 seções: o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Enquanto Virgílio tratou de problemas políticos e morais de Roma sob a perspectiva de mitos clássicos, Dante adota uma roupagem cristã e um sentimento de moralidade teológica, situando-se como um pecador penitente em busca da redenção pessoal. Dante inspira-se em Virgílio para situar as portas de Hades no lago de Averno, no III canto do Inferno, sobre as quais havia uma tétrica advertência: “abandonai toda a esperança vós que aqui entrais”.
Para Dante, quem se confessa angustiado, trêmulo e hesitante face ao sombrio aviso, o ingresso no Inferno tem uma dramaticidade Cristã. Numa construção fantástica de Dante, Virgílio quem acompanha o Sumo Poeta em sua expedição religiosa o encoraja a prosseguir, valendo-se de convincentes argumentos. Enquanto em A Eneida, o Inferno se apresenta como um assustador sítio geográfico, mas com elementos de sacralidade pagã, em A Divina Comédia, o Hades não é apenas um ponto geográfico, mas principalmente uma sentença moral e religiosa, no reino do Juízo Eterno.
Estava eu assim entretido e ocupado no seguro e confortante paraíso dos nefelibatas quando, após 2 horas e meia, minha mulher me alertou: “Amor, chegou a nossa vez”. “Que bom,” respondi, “tenho que ir à casa de banhos. Será que ainda existe?”
DURVAL DE NORONHA GOYOS JR.
Escritor polígrafo brasileiro, italiano e português. Ex-presidente da União Brasileira de Escritores. Da Academia de Letras de Portugal. Diretor do Sindicato de Escritores do Estado de São Paulo. Escreve quinzenalmente neste espaço às quartas-feiras