Diário da Região
Painel de ideias

Braçile, Hobrasill

Nos enredos da história, “Hobrasill”, o “Braçir” lendário se descorou dos mapas da ilusão. Mas insiste resoluto, sacudido, apesar dos “ridículos tiranos”, capatazes pré-históricos, motosserras e machados

por Romildo Sant’anna
Publicado em 28/09/2025 às 03:49
Romildo Sant’Anna (Romildo Sant’Anna)
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Liberdade é azul, igualdade multicor e brasil, vermelho. No Velho Mundo empestado e faminto, o sonho de fuga hasteava-se em profecias. Velhos mapas e cartas de navegações indicavam um horto quimérico, fertilíssimo: “O’Brazil”. Lugar paradísico, “Braçile” dos castelos levitantes e torres de cristais içando flâmulas, brasões, e habitado por gente imbuída de fraternidade. “Braçir” benzido pelas quatro hastes da sagrada cruz. Criaturas inocentes folgariam sem lascívia pelo clima tropical, a se banharem em cachoeiras, suaves arroios, avencas... “Hobrasill” que, em se plantando, tudo dá: flores em cores e perfumes nunca vistos, frutos atraentes aos olhos e bons de comer. Sementeiro de primores, “O’Brazil” de arbustos do conhecimento e juventude, e onde – quem sabe? – Jesus voltaria com seus doze e anjos caídos emergiriam das trevas.

Estranha calmaria os trouxe àquele cenário. Escrevera Vaz de Caminha que a terra achada era tamanha que haveria nela vinte ou vinte e cinco léguas de costa e infindos arvoredos. Seu povo, de uma falta de culpa tal que a de Adão não seria maior. Andavam entre os homens moças bem novinhas, gentis, os cabelos muito pretos e compridos pelas costas. E suas vergonhas tão cerradinhas e limpas das cabeleiras que os lusitanos, de as olharem, nem se envergonhavam. Muitas daquelas pessoas vinham estar com os carpinteiros das caravelas. E o faziam mais por admirarem as ferramentas de ferro, já que cortavam o que fosse com pedras feitas como cunhas metidas em paus, entre talas bem atadas.

Encheram-se os celeiros, redigiram-se outras crônicas, fizeram-se carregamentos. Entre tantos lenhos havia um da cor de brasa e recebera por nome Pau Brasil. Ibirapitanga, ibirapuitá, orabutã é como os indígenas o chamavam. Havia em toda orla, excelsos, avistados em chamas amarelas e que, do cerne de seu tronco se via o pigmento de um vermelho claro ao rubro quase-preto. Tornou-se o precioso pau-de-tinta trocado por facões, espelhinhos, bugigangas. Veio a ser o apelido de um povo: brasileiro, o que derruba o Pau Brasil.

Nas engrenagens do tempo, de um “Braçile” visionado em cartas náuticas e cartografias medievais, se acenderia sobre as demais cobiças a esplêndida madeira. No pano púrpura reluz a majestade. A suscitar encorajamento e calor, vermelha é cor vivaz da juventude, da riqueza, poderio e paixão. Pigmento raro, resistente, sugeria hierarquia, a toga dos mais togados, o lustre dos ilustrados. Desse caule se tingiria a nobreza suntuosa e dele quereriam se vestir juízes supremos, doutores da lei. À custa de estrepitoso aço ecoando nas florestas, devastaram-se os brasis. Nos enredos da história, “Hobrasill”, o “Braçir” lendário se descorou dos mapas da ilusão. Mas insiste resoluto, sacudido, apesar dos “ridículos tiranos”, capatazes pré-históricos, motosserras e machados.

ROMILDO SANT’ANNA

Crítico de arte e jornalista. Livre-docente pela Unesp, é membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura (Arlec). Escreve quinzenalmente neste espaço aos domingos