Diário da Região
PAINEL DE IDEIAS

Comedores de batatas

Há variantes mais agudas referindo-se ao tubérculo que, a um palmo da superfície do solo, salva-se dos maus tempos e encrencas humanas

por Romildo Sant’anna
Publicado em 20/12/2025 às 18:51
Romildo Sant’Anna (Romildo Sant’Anna)
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“Batata”, signo localizado em rasas e fundas escavações. Nelson Rodrigues usava a interjeição “É batata!” ao aludir a uma coisa óbvia, garantida. No cotidiano, há expressões idiomáticas de grande efeito semântico como mandar alguém “plantar batata” ou transferir a outrem um encargo custoso passando-lhe a “batata quente”. Mas há variantes mais agudas referindo-se ao tubérculo que, a um palmo da superfície do solo, salva-se dos maus tempos e encrencas humanas.

A parlenda “Batatinha quando nasce / espalha a rama pelo chão, / menininha quando dorme / põe a mão no coração” é das mais recitadas no país de tradição rural. Anotou-a Sílvio Romero, pai da historiografia literária, em ‘Cantos Populares do Brasil’ (1885). Singelamente pueril, demarca o início do ciclo existencial: Da terra viemos (e a ela tornaremos). Gregária no subconsciente coletivo, denota a expansão generosa da planta no ventre da terra-mãe, a propagação de seus ramos no solo, precioso alimento, a inocência humana perdida na idade adulta e o despertar para o fazer (a mão) e o sentir-se emotivamente no mundo (o coração).

“A Balada de Narayama” (1958), de Keisuke Kinoshita, está entre as mais lindas obras do cinema japonês. Em estilização do teatro kabuki das eras feudais, foca um rito etnológico na forma de cantos e poesia. A bela refilmagem de 1983, de Shohei Imamura, repete o drama da sujeição humana aos rigores da natureza. A escassez de comida (batatas) exige que, ao nascer uma criança, um idoso deve morrer. Em trágica missão, cabe ao filho mais velho carregar os pais ao topo nevado de Narayama. “Dizem que Deus nos espera lá em cima”, consolam-se os afligidos pela fome. Amargura correlata é plasmada na comovente pintura ‘Os Comedores de Batatas’ (1885, Museu van Gogh, Amsterdã), da fase holandesa do artista. À luz de um candeeiro gerando contrastes de tons negro-amarelados acontece a resignada ceia de camponeses repartindo nacos de míseras batatas.

Machado de Assis, tomado da genial ironia, propôs uma filosofia fictícia em ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’ (1881). Nomeou-a de Humanitismo. Interagindo com a ciência evolucionista de Charles Darwin (a seleção natural premia os fortes e aniquila os fracos), mostra o efeito disso no desamor entre pessoas. Daí emergem os perversos, venais, os avarentos, as concorrências odientas e desigualdades como normas socioculturais. Porém, no ocaso da vida, o laurel dessa “evolução” são dinheiros inúteis, um saco de estopa de frivolidades. E sentencia: “Ao vencedor, as batatas!”. Quer dizer, ao vitorioso azedas ruínas. O pessimismo machadiano se inscreve na epígrafe do romance: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”. No banquete dos bichos subterrâneos, asquerosos, o odor nauseante de podres batatas.

ROMILDO SANT’ANNA

Crítico de arte e jornalista. Livre-docente pela Unesp, é membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura (Arlec). Escreve quinzenalmente neste espaço aos domingos