Jogo maquiavélico

O recente aumento do IPTU em nossa cidade exige uma reflexão firme e bem fundamentada. É justo reconhecer que a planta genérica de valores estava congelada há mais de dez anos, gerando distorções que comprometem a justiça tributária. A atualização, em si, poderia ser vista como medida legítima. Porém, legitimidade não é sinônimo de arbitrariedade — e é justamente a forma de implementação que merece severa crítica.
Se a planta estava defasada, o razoável seria escalonar o reajuste, evitando um impacto abrupto. O teto de 20% pode parecer limitador, sobretudo após a proposta inicial que previa aumentos superiores a 200% sem qualquer freio, mas na prática significa um peso muito acima da inflação média dos últimos anos (4% a 6% ao ano). Diante de salários estagnados, desemprego e alta nos preços, o tributo deixa de ser instrumento de justiça para se tornar fator de pressão social, em descompasso com a capacidade contributiva da população.
Ao mesmo tempo, outro projeto prevê vincular a taxa de lixo a serviços essenciais, como água e esgoto — medida arriscada, pois atrasos no pagamento, previsíveis diante do encarecimento das contas, poderão levar ao corte do serviço, atingindo diretamente a dignidade das famílias. Usar tributo como gatilho para penalizações tão severas afronta o princípio constitucional que veda condicionar serviços vitais a imposições coercitivas sem respaldo social.
Não se pode ignorar que, enquanto o poder público impõe reajustes severos, a população segue enfrentando saúde sucateada, educação defasada, infraestrutura precária e segurança instável. Os cidadãos até aceitam contribuir mais quando percebem retorno concreto, mas, quando o aumento pesa e os serviços permanecem deficientes, a confiança se rompe.
O episódio político que cercou a votação do aumento do IPTU agravou ainda mais a desconfiança. No próprio dia em que o projeto foi aprovado, o prefeito e uma comitiva viajaram para os Estados Unidos — ausência simbólica de prioridades. E, durante a viagem, um novo e lamentável episódio: respostas infantis, irônicas e mal explicadas a contribuintes que solicitavam esclarecimentos. Em vez de diálogo, o que houve foi desdém.
Igualmente desdenhosa à postura do Executivo foi a conduta do Legislativo: em vez de agir como contrapeso democrático, a maioria da Câmara tornou-se cúmplice, selando acordos de ocasião a portas fechadas. Ignorou as vozes das ruas, deixando de legislar para a cidade, aprofundando o divórcio entre representantes e representados, minando a confiança nas instituições e reduzindo a política local a um jogo de cartas marcadas.
Não se trata de rejeitar a atualização tributária, mas de exigir que seja feita com justiça, proporcionalidade e transparência. Governar somente por números, sem considerar a vida concreta dos cidadãos, compromete a legitimidade da cobrança; virar as costas à população reduz a função representativa a mero arranjo de interesses.
Que essa conjuntura sirva de alerta: nossa cidade precisa de gestores e legisladores que saibam ouvir e agir com equilíbrio. A construção do futuro não se faz com aumentos autoritários e conchavos obscuros, mas com respeito fiscal, compromisso com a coletividade e responsabilidade social. A justiça tributária não nasce da frieza das planilhas, mas do reconhecimento da dignidade de cada cidadão.
PROF. DR. JOÃO PAULO VANI
Presidente da Academia Brasileira de Escritores (Abresc), é pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da USP. Escreve quinzenalmente neste espaço aos sábados