Diário da Região
Painel de ideias

Massa de vidraceiro e Vaca Preta

Aquela cidade com gosto de cachorro-quente da Americanas foi deixando aos poucos de existir, esvaziada pelas atrações da Andaló e do shopping. Ou será que não?

por José Luís Rey
Publicado em 10/08/2025 às 00:35Atualizado em 12/08/2025 às 18:56
José Luís Rey (Divulgação)
José Luís Rey (Divulgação)
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Massa de vidraceiro, lembra? Aquela mistura com cheiro de linhaça, que servia para prender os vidros às janelas e eternizar as impressões digitais da molecada depois que endurecia. Não sei se ainda existe, só sei que não vejo mais vitrôs com impressões digitais de crianças.

Há pouco tempo, para explicar a um paciente os sintomas da hepatite, os médicos diziam que a pele começava a ficar amarelada, a urina escura e as fezes da cor de massa de vidraceiro. Hoje, se fizerem a mesma comparação, vão ser tão claro quanto eu tentando explicar a um garoto de sete anos o que era um long-play. Nada resiste ao tempo. Nem a massa de vidraceiro, embora ela tenha certamente registrado nos vitrôs as impressões digitais de muitas e muitas gerações.

As mesmas gerações para as quais o acontecimento que sancionava a aproximação do Natal era a chegada daquela caixa de vime, aí pelo início de dezembro, que era aberta com o solene acompanhamento de um conselho familiar: a Cesta de Natal Amaral. Um quê de soberba acompanhava o ritual da descoberta, entre tufos de aparas de madeira e tiras de papel celofane, de coisas como vinho Sangue de Boi, salsichas Armour, doce 4x1 da Cica, tâmaras em conserva, azeitonas gregas, biscoitos champagne, panetone, figos em compota ... Tinha cheiro de Natal, mas também passou.

Quando as cestas chegavam, a cidade toda já estava impregnada de cheiro de Natal. Comércio aberto à noite, papais-noéis disputando a atenção dos transeuntes que se espremiam nas calçadas da General e da Bernardino, luzes coloridas pendendo das gambiarras que cruzavam as ruas pelo alto.

A Bernardino, aí pelos anos 70, concentrava os points da cidade – da Padaria São Jorge à Salada Paulista, um trecho de 600 metros onde as fachadas das lojas, dos bancos e dos cinemas se alternavam com o brilho de lugares como o Oba-Oba, Souza Drinks, Putz Sgrilla, Don Calogero, Boate Eggs, bar do japonês, Cinelândia, Danúbio Azul, Bar do Jeca, Casa das Vitaminas e por aí vai.

Alguns anos antes, essa passarela tinha o bar Luar de Agosto, a Sorveteria Colúmbia (em frente a Casa Bueno), Ao Beber Sorrindo (antecessor da Casa das Vitaminas), o Bar do Otávio (na General, em frente da Americanas), a Pastelaria do Jaime (na Jorge Tibiriçá, para baixo da Regional Clipper) e a célebre Petiscaria Caron, na Siqueira Campos, cujas receitas de salgados irresistíveis, segundo ouço dizer, agora estão sendo utilizadas pelo Bar do Pitu, no comecinho da Coronel Spínola.

Aquela cidade com gosto de cachorro-quente da Americanas foi deixando aos poucos de existir, esvaziada pelas atrações da Andaló e do shopping. Ou será que não? Que a cidade ainda é a mesma e as pessoas é que mudaram, acometidas pelo senso de urgência dos tempos modernos?

E vaca-preta, ainda tem? A improvável mistura de Coca-Cola com sorvete de creme, que sonorizava as sorveterias com uma sinfonia de roncos de canudinho, será que resistiu à síndrome da massa de vidraceiro?

JOSÉ LUÍS REY

Jornalista em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço aos domingos