Diário da Região
PAINEL DE IDEIAS

O corpo como último refúgio

Maratonas e atividades físicas extremas ganham força como uma catarse coletiva contra a ansiedade. Correr em meio ao caos urbano é uma tentativa de resgatar o silêncio interior

por Mara Lúcia Madureira
Publicado em 24/09/2025 às 21:24Atualizado em 25/09/2025 às 03:25
Mara Lúcia Madureira (Mara Lúcia Madureira)
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Nas sociedades fragmentadas por polarizações e avanços de regimes totalitários, a opinião pública é mais influenciada por crenças pessoais e convicções ideológicas do que por fatos objetivos. A verdade factual é relativizada e secundarizada. A manipulação comunicacional (notícias falsas e conteúdo personalizados) explora o medo e mobiliza afetos para promover o senso de pertencimento e sustentar interesses políticos.

O que temos para hoje? Um Congresso que amplia seus privilégios e cria barreiras ao controle judicial - um retrocesso institucional a favor da impunidade e enfraquecimento do combate à corrupção e da democracia, justamente no momento em que, cada vez mais, autoridades, forças de segurança, sistema judiciário, parlamentares são corrompidos e subordinados a interesses do crime organizado e a economia paralela financia campanhas eleitorais.

Instituições religiosas apelam para a fé para legitimar ações políticas e deslegitimar opositores como “inimigos do bem” e “contrários à família”. Eventos religiosos se tornaram espaços de campanha e afirmação de poder com grande influência sobre governos e pautas legislativas. O discurso de batalhas morais e espirituais, sustentada pelo controle de meios de comunicação, mobiliza o eleitorado, aprofunda divisões sociais, impacta decisões políticas e os rumos da democracia.

Governos populistas e autoritários adotam narrativas de defesa da liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, censuram seus críticos, demonizam jornalistas, questionam a legitimidade da imprensa, ameaçam sancionar estações de TV e canais de comunicação, utilizando o sistema legal para silenciar oponentes. A retórica de “inimigos” enfraquece a confiança pública nos meios de comunicação, importante contrapeso ao poder político.

Liberdade de expressão não significa licença para mentiras e incitação à violência. O Estado tem legitimidade para regular comunicações públicas, garantir padrões de verdade e evitar abusos. A contradição da liberdade seletiva é proteger vozes favoráveis e moldar o espaço público para reduzir a influência de movimentos contrários à base governista da ocasião.

A crise extrapola o fenômeno externo da corrupção e ocupa o espaço psíquico com notícias constantes de violência, guerras, debates tóxicos, avalanche de análises, opiniões e “cortes”. A mente é colonizada pelo incessante ruído da desinformação e o corpo reaparece como o último território de verdade e gesto de resistência.

Em tempos de pós-verdade e exaustão mental, resta ao corpo nos devolver ao real. Os músculos e o sangue transcendem do estado biológico para o político como primeiro campo da opressão e último bastião da liberdade. O corpo adoece e protesta, é vulnerabilidade e resistência. Maratonas e atividades físicas extremas ganham força como uma catarse coletiva contra a ansiedade. Correr em meio ao caos urbano é uma tentativa de resgatar o silêncio interior.

A erosão da confiança em governos e instituições transforma o corpo em laboratório de soberania pessoal. O bombardeio de opiniões-relâmpago nas redes substitui a reflexão pelo consumo rápido de certezas. O esforço físico doloroso e repetitivo nos devolve a sensação de estar vivo e alguma esperança de sobrevivência psíquica. O corpo é linguagem quando a palavra é censurada e resistência contra a anulação da subjetividade.

MARA LÚCIA MADUREIRA

Psicóloga Cognitivo-comportamental em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às quintas-feiras