Diário da Região
PAINEL DE IDEIAS

Calçadas como espaço de cidadania

A calçada, como direito coletivo de ir e vir do cidadão, com liberdade, autonomia e segurança, é ignorada aqui. Ante situação tão caótica, vou criando minhas amarelinhas

por Merli Diniz
Publicado em 25/06/2025 às 20:31Atualizado em 26/06/2025 às 09:24
Merli Diniz (Divulgação)
Merli Diniz (Divulgação)
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Quem nunca pulou amarelinha? Creio que a maioria de nós teve a oportunidade de participar da brincadeira. A origem do jogo é controversa, mas acredita-se ter sido criada na Roma antiga, já que há registros que mostram crianças pulando amarelinha nos pavilhões de mármore das vias romanas e naquele contexto tinha um simbolismo especial, que era a passagem do homem pela vida. Em uma ponta escrevia-se céu e na outra, inferno. O objetivo era sempre, atingir o céu. Aportou no Brasil com os lusitanos.

Apesar de já ter passado da idade para tal jogo, pelas calçadas de minha cidade, diferente da minha infância quando era pura diversão, sou obrigada a ‘brincar de amarelinha’, situação constrangedora causada pelo desleixo dos proprietários e do poder público em fiscalizar.

A calçada, como direito coletivo de ir e vir do cidadão, com liberdade, autonomia e segurança, é ignorada aqui. Ante situação tão caótica, vou criando minhas amarelinhas sempre com o cuidado de não errar o pulo do gato. Piso no quadrado da esquerda, ora no da direita e na impossibilidade destes, vou para o centro na faixa destinadas aos deficientes visuais, quando é possível. Encontro também espaços vazios que tenho que saltar para alcançar a outra casa, correndo o risco de me estatelar no chão e que muitas vezes me obriga a usar o meio fio.

Salto aqui, salto acolá, desvio dos zumbis ao celular, dos carros estacionados nas calçadas, ocasião em que meu jogo é interrompido e tenho que buscar a rua para completar meu percurso, a qual me oferece grande risco de atropelamento, pois o tráfego da cidade é extremamente violento. Nessas horas, sinto o vento que os carros em alta velocidade provocam ao passarem, zunir em meus ouvidos. Arrepio de medo e como em nosso entretenimento, busco sair do inferno. Volto a dançar ora aqui ora acolá. Tal exercício físico e mental remete-me a Carlos Drummond de Andrade e seu poema:

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.

Diferente dele, vou driblando as pedras físicas do meio do meu caminho, sem poder efetivamente removê-las.

Nessa falta de segurança, caminho sobre as pedras do caminho do passeio público da minha cidade, na expectativa, como em nossas brincadeiras, de sair do inferno e chegar ao céu, simbolicamente, claro, destarte seja grande o risco de literalmente se materializar.

O proprietário do imóvel tem o dever de manter a calçada em boas condições, livre de obstáculos e acessível a todos. O poder público tem a obrigação legal de fiscalizar a manutenção das calçadas e garantir que sejam construídas e conservadas em padrões de segurança e acessibilidade. É direito nosso, como munícipes, caminharmos por calçadas seguras e acessíveis que permitam a livre circulação e o acesso a diferentes espaços da cidade.

Enquanto isso não acontece, transito pelo limbo, na expectativa de que os responsáveis pelas pedras do nosso caminho cumpram seu papel constitucional, cuidando não só do passeio público, mas de todos os serviços essenciais à população, garantindo nossos direitos e cumprindo com os deveres para os quais foram eleitos.

MERLI DINIZ

Professora, advogada, poeta e cronista. Vice coordenadora da Comissão de Direito e Literatura da 22ªSubseção da OAB Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às quintas-feiras