Diário da Região
PAINEL DE IDEIAS

Costura de mim

Meu nome tem som atual, mas é feito de ontem. Tem doutor, tem diploma, tem letra acadêmica, mas carrega, em silêncio, mãos calejadas e sotaques estrangeiros

por João Paulo Vani
Publicado em 27/06/2025 às 20:58Atualizado em 30/06/2025 às 10:58
João Paulo Vani (João Paulo Vani)
João Paulo Vani (João Paulo Vani)
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“Quem é você?” — pergunta Francisco Buarque de Holanda, como quem canta e interroga o espelho, a sombra, o passado. Sempre me inquietei com essa pergunta. E não porque não saiba quem sou, mas porque cada vez que tento responder, outras vozes me atravessam, outras peles me vestem, outros nomes sussurram sua herança dentro de mim.

Meu nome tem som atual, mas é feito de ontem. Tem doutor, tem diploma, tem letra acadêmica, mas carrega, em silêncio, mãos calejadas e sotaques estrangeiros. Sou o neto da empregada doméstica de olhar doce e passos firmes, que acordava cedo para cuidar dos filhos dos outros enquanto sonhava um futuro melhor para quando formasse sua família. Avó, essa palavra que parece pequena, mas tem o tamanho da coragem de uma mulher que, mesmo invisível aos salões onde limpava chão na juventude, permaneceu altiva por toda a vida, costurando dignidade em cada dobra do avental, em cada tanque de roupa lavado para fora.

Sou também filho de uma cabeleireira. Mulher de tesouras em punho e espinha ereta, que, entre escovas e tintas, foi arquiteta do meu destino. Em sua rotina, com salão cheio e conversas se sobrepondo às músicas de amor e fofocas de novelas vindas do rádio, ela erguia mais que penteados: erguia sonhos. Sozinha. Sem queixas. Me ensinando, a cada corte e caixinha de marmita, que amor também se mede no esforço diário de não deixar faltar nada.

Mas antes delas, houve Pietro, nascido em 29 de junho, batizado em homenagem ao santo. Meu bisavô. Imigrante italiano vindo de Rieti; homem de mãos grandes e coração do tamanho do Atlântico. Veio com os pais, que, sem saber ao certo o que encontrariam, trouxeram na bagagem mais esperança do que posses. Nunca o conheci, mas o sinto em mim como uma raiz silenciosa: aquele homem frágil ao final, dependente de muletas, é quem me firma os pés no chão, não permitindo que me esqueça de minha origem.

Por isso, quando me perguntam “quem é você?”, não respondo com títulos. Respondo com nomes. Com histórias. Com a força que vem daqueles que me antecederam.

É verdade que carrego um diploma. Mas mais do que isso, carrego o peso leve da origem: a faxina da minha avó, o rímel borrado da minha mãe após mais um dia puxado, o sotaque estrangeiro de Pietro admirado com os bondes. Carrego também as perguntas que Chico deixou pairando no ar: quem é você que me trouxe até aqui? Pois, sim, as origens nos acompanham como espectros ou amuletos. E se não cuidamos delas, viram cobranças, sombras. Mas, quando as reconhecemos, se tornam âncoras e asas.

Na véspera do aniversário de Pietro, escrevo esta crônica não somente como homenagem, mas como confissão: sou ele. Sou minha avó; sou minha mãe. Sou uma colcha de retalhos de histórias que me antecederam. Não sei se sabiam o que eu seria, mas sei que sou, em alguma medida, a resposta possível às perguntas que a vida lhes impôs. E talvez isso seja o mais próximo de saber quem eu sou.

Parece-me que, enquanto escrevo, quase ouço Pietro assobiando uma cantiga italiana, minha avó cantando enquanto lava roupas no tanque, minha mãe penteando os fios da vida com paciência. Sou todos eles. E sou, agora, aquele que tenta transformar essas memórias em palavras. Talvez, só talvez, para um dia alguém me perguntar, com os olhos de outra geração: “Quem é você?”

PROF. DR. JOÃO PAULO VANI

Presidente da Academia Brasileira de Escritores (Abresc), é pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da USP. Escreve quinzenalmente neste espaço aos sábados