Entre o voo e o arrasto
O novo dissolve certezas, promove crises e demanda novas atitudes. A revisão de si pede coragem, desapego e humildade. Evoluir requer dignidade para se desdizer e tornar-se outro

Tempo, tempo, tempo.... Senhor supremo que não negocia, arrasta sem compaixão. Afio a palavra e sigo contigo onde o pensamento hesita.
O sujeito desencontrado no tempo tem o corpo no agora e ideias fossilizadas. Não elabora o passado como trecho do percurso; habita-o como a única morada possível. Não se adapta à mudança, se defende. Age com medo e fúria, como quem protege um território caduco, armado de convicções imutáveis e narrativas absolutas.
Passado não é abrigo, é calabouço. Protagonista no teatro dos tolos, sombra que persegue, forçando ascendência no autoengano. Aquele que se opõe à mudança não vence o tempo, colapsa em si. Porque mudar é morrer um pouco, e o ego narcísico não se consente morrer.
O novo é vertigem. O assombroso porvir rasga o tecido da familiaridade, desorganiza o mundo como ele era e nos lança, sem nenhum mapa, no domínio do desconforto, no espaço do agora. Ameaça a estabilidade e nos obriga a abdicar dos pactos com o conhecido.
A resistência ao novo é uma recusa existencial à fluidez. A mente, fixada no passado não o preserva, mumifica-se, mantém-se em guerra com a realidade e com o presente. A nostálgica anestesia do “antes era melhor” é lamento dos que refutam a morte simbólica e contínua para renascer melhor.
A mudança mobiliza sensações primitivas: o medo da dissolução do eu. A hostilidade ao imprevisível é sintoma da incapacidade de lidar com a ambiguidade. O pensamento cristalizado carrega fragilidades cognitivas. O desamparo emocional, frente ao desconhecido, faz reagir com tensão, a mente com negação e o afeto com teimosia.
Rigidez não é força, mas pânico disfarçado de certeza. O ser enrijecido se torna espectro. Repete rituais sem sentido, defende crenças anacrônicas, se enfurece com tudo que desloca sua narrativa identitária. Seu drama não é o de quem não muda, mas de quem se perde tentando permanecer. A ilusão da coerência é uma farsa imodesta de quem não se permite contradições e teme olhar o agora e enxergar o desmonte de suas decrépitas verdades.
O novo dissolve certezas, promove crises e demanda novas atitudes. A revisão de si pede coragem, desapego e humildade. Evoluir requer dignidade para se desdizer e tornar-se outro. É estar disposto a assistir à ruína do velho e pronto para hospedar o novo. É o avançar, com o rigor de quem pensa e a beleza de quem ousa.
Resistir é negar o tempo. A mudança é um atentado à estabilidade do eu, que tenta se manter idêntico, à custa da vitalidade mental e dos vínculos emocionais. O ego infantil responde às transformações culturais, afetivas, tecnológicas e íntimas com ironia e irritação – um disfarce para fraqueza moral de quem perdeu o trem da história.
Envelhecer é lindo, e o desatino da negação, trágico. A pele tracionada sobre a mente-passa– artifício de uma história mal passada, relutante em se adaptar. A vida sem desestabilização é morte. A transformação não é uma traição a quem fomos, mas o único meio legítimo de nos mantermos íntegros e pertencentes ao agora. A morte é o término da história, a mudança, o colapso do enredo.
Quem não suporta a metamorfose morre larva. Perde a chance de voar.
MARA LÚCIA MADUREIRA
Psicóloga Cognitivo-comportamental em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às quintas-feiras