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Índia 

A letra de José Fortuna, artista de tradição rural de Itápolis, se entrecruza com a pureza e sacralidade da heroína da nação Tabajara, no romance ‘Iracema’ (1865), de José de Alencar

por Romildo Sant’anna
Publicado em 14/09/2025 às 08:20Atualizado em 14/09/2025 às 14:18
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a Hugo Ramón Barbosa Oddone

Quem não conhece a guarânia ‘Índia’ (1952), com Cascatinha e Inhana? A Tropicália, valorizando as artes populares e o nativismo Pau Brasil, da Semana Moderna de 22, exaltou essa música na voz de Gal Costa. Tão expressiva, deu nome ao elepê de 1973: na capa, a cantora figurava como “índia”, de tanga e os seios à mostra. A letra brasileira, do poeta e cantor José Fortuna, plena de lirismo e idealismo românticos, difere-se da atmosfera autóctone do poema-canção original de Manuel Ortiz Guerrero, composto em 1928. Eis os primeiros versos, em tradução livre do espanhol/guarani: “Índia, bela mescla de deusa e pantera, / virgem desnuda que habita o Guairá, / romance arisco curvou seus quadris, / imitando uma curva do azul Paraná”.

Trata-se de uma cantiga que, em 1944, foi celebrada como “Canción Nacional de Paraguay”. A guarânia é um dos estilos latino-americanos fortemente mestiçados no Brasil a partir dos anos 50, mormente nas regiões de cultura caipira. A exprimir o sentimentalismo afável na hispano-americanidade, notemos a presença do tango uruguaio-argentino, da polca paraguaia vibrando no rasqueado mato-grossense, do bolero cubano-mexicano, do corrido e canção rancheira mexicanos, todos fundidos às vozes nacionais e ouvidas em estações de rádio, inda que tolhidas pelo preconceito e elitismo pequeno-burguês.

A letra de José Fortuna, artista de tradição rural de Itápolis, se entrecruza com a pureza e sacralidade da heroína da nação Tabajara, no romance ‘Iracema’ (1865), de José de Alencar. São descrições correlatas a evocações à floresta latino-americana “desvirginada” pelo invasor europeu: Iracema, a virgem dos lábios de mel, tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, mais longos que o talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso, nem a baunilha perfumava no bosque como seu hálito. Ouçamos a composição de Fortuna: “Índia teus cabelos nos ombros caídos, / negros como a noite que não tem luar, / teus lábios de rosa para mim sorrindo / e a doce meiguice desse teu olhar... Índia, sangue tupi, tens o cheiro da flor / vem, que eu quero te dar / todo meu grande amor...”.

A vida selvática do passado opõe-se à degradação vital e prostituição no presente em ‘Iracema, Uma Transa Amazônica’ (1974), filme de Jorge Bodansky e Orlando Sena. No samba ‘Iracema’ (1961), de Adoniran Barbosa, a índia é atropelada numa avenida da metrópole. Mas nada é mais atroz que ‘A Índia e o Traficante’ (1986), de Eduardo Dusek e Luiz Carlos Góes. Citando compassos da guarânia original em situações hodiernas, a índia transita entre bares, bordeis. No trágico desfecho, um Landau “passou batido pela fronteira, / uma rajada de metralhadora, / morta no Paraguai”. São duros tempos, diferentes dos que “dentro do meu coração” uma índia em flor era sublimada como a “flor do meu Paraguai”.

ROMILDO SANT’ANNA

Crítico de arte e jornalista. Livre-docente pela Unesp, é membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura (Arlec). Escreve quinzenalmente neste espaço aos domingos