Letramento emocional
A dependência afetiva e as compulsões silenciam a dor que a infância não soube simbolizar

Nascemos em estado bruto de necessidade e o modo como nos relacionamos com o nosso corpo e com outras pessoas é mediado pela autorreferência, na forma como aprendemos a sentir e internalizar as nossas experiências.
A elaboração simbólica se desenvolve no brincar, nas interações e expectativas. A criança que imagina, verbaliza desejos e sentimentos, substitui o ato pela imagem e a urgência, pela criação. Crianças privadas de tais processos buscam alívio imediato e, com grande chance, se tornarão adultos regredidos, incapazes de digerir o mundo pelo pensamento.
A substituição da presença afetiva por telas impede a criança de vivenciar pequenas angústias e processar aspectos básicos de que amor e cuidado podem existir sem o contato físico constante e que uma breve ausência não é abandono. Sem o aprendizado da autorregulação emocional, na vida adulta não encontrará recursos internos para suportar o tédio, a solidão, ansiedade e as frustrações inevitáveis, que dificultam a construção de vínculos saudáveis.
Se, na infância, a criança precisa de celular para se acalmar, na vida adulta conservará o hábito ou migrará para outras compulsões. Qualquer desconforto será resolvido com algo externo. A incapacidade de administrar estados emocionais, fecha-se num circuito autor referencial, em que o próprio ato é o centro da experiência. A consequência tardia se traduz na sensação de perda do controle e fragilização da autoconfiança.
A dependência afetiva e as compulsões silenciam a dor que a infância não soube simbolizar. Quando a presença do outro representa ameaça, a criança se afasta. Quando a ausência é desespero, ela o busca. O outro não é percebido como sujeito, mas como meio, obstáculo ou ausência. A criança não validada aprende a se defender e gratificar-se de forma distorcida. A compensação por tudo o que lhe fora negado é tão ou mais destrutiva do que a negligência do mundo.
A autopriorização excessiva é sintoma de desamparo. O ego se infla para preencher o vazio, inibir o pensamento reflexivo e o contato com a realidade. O corpo não é mais instrumento de expressão e encontro, mas máquina de recompensa. Compulsões são próteses afetivas, uma proteção ilusória contra a vulnerabilidade emocional.
A dor do desamparo precisa machucar o outro. O indivíduo só sente que é amado quando alguém sofre por sua causa. Por não saber construir vínculos, expulsa as pessoas da sua vida. O falso hedonismo é fachada para esconder a degradação, uma prece sem fé para se salvar de si próprio e da solidão. Todas as manobras retornam ao ponto original: fuga da dor e negação da interdependência.
O sujeito confunde necessidade com direito e carência com urgência. Quer atenção incondicional e consolo sem frustração. Ou o mundo responde à sua dor com prontidão, ou ele se anestesia. Na lógica infantil, quer ser cuidado, sem depender e ser amado sem rejeição. O prazer não basta, é preciso reparação. O mundo lhe deve amor, cuidado, estabilidade e segurança. O alívio importa mais que o sentido, porque preenche o vazio da desconexão.
O letramento emocional acontece nas relações de confiança, no ritmo de presença, ausência e retorno. A travessia da dor para a palavra é a elaboração. Na passagem do reflexo à reflexão, reconstrói-se o eixo interno da estabilidade.
Aquele que se reencontra, encontra o outro sem medo de se perder.
MARA LÚCIA MADUREIRA
Psicóloga Cognitivo-comportamental em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às quintas-feiras