Liberdade e saúde pública
Ampliar o acesso a substâncias destrutivas, sem que o Estado disponha de estrutura para oferecer tratamento adequado, é acender o pavio da desagregação social, como evidenciam episódios recentes nos Estados Unidos

Uma linda mulher decidiu viver no campo, em harmonia com a natureza e distante dos amores. Entre os homens que se apaixonaram por ela, um abandonou a riqueza e tornou-se pastor de cabras para estar por perto. Não correspondido, morreu; não se soube se por suicídio ou profundo desencanto. Os amigos dele, também rejeitados, passaram a acusá-la de homicídio, revelando um juízo deturpado.
No velório, a mulher compareceu. Sua beleza excedia a fama. Falou com firmeza: jamais escondeu sua escolha de viver só, e sempre tratou com respeito os que lhe dirigiam a palavra. Ao sair, alguns tentaram segui-la, mas um estranho, vestido com armadura, interveio. Autointitulado cavaleiro andante, pôs a mão na espada e declarou: “Se alguém perseguir esta moça, tomarei minha arma para defendê-la. A liberdade dela está acima de qualquer distorção feita por quem aqui está.”
Nesse episódio, o “lunático” foi o mais racional, ao defender um princípio essencial: o direito de uma mulher à liberdade de escolha. No Ocidente atual, isso pode parecer trivial, mas na Idade Média não era. Dom Quixote nos ensina que a defesa de princípios é indispensável, no caso, da liberdade que não fere ninguém, que não impõe danos a terceiros. Trata-se, portanto, não de qualquer liberdade.
De forma semelhante, a saúde pública, um bem coletivo e difuso, deve ser protegida por todos. É possível discordar dos meios, como campanhas de prevenção, acesso a medicamentos, educação nas escolas ou punições, por exemplo, a quem oferece drogas altamente viciantes. Mas o princípio em si não pode ser relativizado. Como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, quando um princípio fundamental é sobrepujado, desmorona-se o sistema que dele depende.
Circulou recentemente um vídeo, nos EUA, de um jovem furtando itens em uma loja. Um funcionário o imobiliza; outro o agride com um pedaço de pau. Uma cena brutal. Por trás disso, há um sistema em colapso. A legalização da maconha, em nome da liberdade de escolha, ampliou o acesso a substâncias nocivas, sem resposta eficaz à compulsão dos dependentes. Em alguns lugares, furtos de baixo valor foram despenalizados, mas usuários em estágio avançado de dependência, com discernimento comprometido, não observam tais limites. O resultado é a corrosão do pacto social e o surgimento da justiça pelas próprias mãos; expressão de um Estado ausente, tanto na saúde quanto na segurança.
A liberdade, como a defendida por Dom Quixote é qualificada, não é inconsequente. A mulher que decidiu viver só não feriu ninguém. A liberdade dela estava dentro do bom Direito. Nesse sentido, Joseph Ratzinger alerta: “a liberdade sem direito é a anarquia que destrói a própria liberdade”. E adverte: “a revolta contra o direito cresce quando este deixa de parecer expressão de uma justiça a serviço de todos”.
A liberalização de drogas, sobretudo em países com serviços públicos frágeis como o Brasil, já tão afetado pelos efeitos do álcool, tende a aprofundar a crise na saúde pública. Ampliar o acesso a substâncias destrutivas, sem que o Estado disponha de estrutura para oferecer tratamento adequado, é acender o pavio da desagregação social, como evidenciam episódios recentes nos Estados Unidos.
Invocar a liberdade como justificativa para a liberalização das drogas desconsidera seus impactos coletivos. Trata-se de uma liberdade intransitiva, desvinculada do dever de responsabilidade, como se cada indivíduo pudesse agir à sua maneira, e coubesse à sociedade suportar as consequências. Porém, em um contexto de insuficiência dos serviços de saúde, as escolhas individuais sobre o uso de drogas recaem sobre todos, penalizando sobretudo os dependentes mais vulneráveis, que acabam ainda mais expostos, por vezes até vítimas da violência da justiça feita com as próprias mãos.
EVANDRO PELARIN
Juiz da Vara da Infância e Juventude de Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às terças-feiras