Louvação às bibliotecas
A Joanina, a mostrar na nave central o retrato do rei D. João V em caixilho dourado a sugerir uma cortina, não se parece com as bibliotecas comuns

Universidade de Coimbra... Enraizada solenemente no topo da colina margeada pelo rio Mondego, os tempos se falam em latins, rimances e em português. Com as ventanias, sinos badalam em solfejos ecoando nos muros e paredes altas. Nesse recanto mítico habita, majestosa, a Biblioteca Joanina. No largo da histórica Faculdade de Direito erigiu-se um altar às palavras e onde os livros perfilam-se como sentinelas, oráculos. Alinham-se em estantes de madeiras trazidas do Brasil colonial por navegantes do reinado português.
Inaugurada em 1728, adentrá-la é como percorrer uma estrada de relíquias. Os olhares se espalham e a alma se alegra. Percebem um local mais grandioso que as mobílias centenárias, mapas e tesouros impressos em pergaminhos, papéis. Registram rastros humanos deixados em períodos de sonhos, consciências, criações estéticas, sapiências. Cada tomo semelha a respiros fundos, densos, plenos de descobertas e feixes de conhecimentos. As prateleiras se erguem em colunas e vergalhões de mogno e carvalho. Alcançam as cúpulas decoradas com afrescos e cimalhas esplêndidas. Preservam, com letras dos antepassados, as bulas do bem-viver, tratados científicos, cantigas aos heróis que ousaram decifrar o mundo pisando em terras distantes. O dourado que brilha em dorsos e relevos dos volumes não ofusca. Quiçá nos segredasse: “Aqui são luzes de inteligências, o esplendor, vocábulos”. São 70 mil monumentos, os livros.
Não se engane em pensar que tudo são espessos paredões de pedras que a mantêm em temperatura amena nos invernos e verões. Vive ali, dormitando de dia, uma família de morcegos. O escritor Umberto Eco a reverenciou ao visitar mais de uma vez a Joanina. São guardiões noturnos que, avoando pelos recintos na busca de traças, insetos, tomam conta do acervo. Instaura-se o pacto ancestral entre a precisão dos bichos e a sensatez dos homens, entre os instintos, sentimentos e razão. E, ouso dizer, há mais verdades nesse escurão recôndito que nos candeeiros elétricos do viver cosmopolita.
A Joanina, a mostrar na nave central o retrato do rei D. João V em caixilho dourado a sugerir uma cortina, não se parece com as bibliotecas comuns. Enfeixa uma prece, um canto de louvor à humanidade, sacrário em estilo barroco onde os séculos sussurram uns com os outros nas lombadas dos livros, nas iluminuras, arabescos capitulares e pergaminhos tingidos de eternidade. Arremeda um tempo que não passa (como o infinito), iguala-se ao sal dos mares que, tempos passados, inspirou epopeias lusíadas e conquistas lusitanas.
Quem visita a Biblioteca Joanina jamais volta a ser o mesmo. Um universo rebrilha nos olhos, na sensibilidade e consciência do imprescindível. Revivem formas e conteúdos da delicadeza. Radicam-se na alma valores silentes, aninhados nos portais e vidraças invisíveis de nossa identidade.
ROMILDO SANT’ANNA
Crítico de arte e jornalista. Livre-docente pela Unesp, é membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura (Arlec). Escreve quinzenalmente neste espaço aos domingos