Diário da Região
PAINEL DE IDEIAS

Nomes não cabem no silêncio

por Ary Ramos da Silva Júnior
Publicado em 25/07/2025 às 20:18Atualizado em 26/07/2025 às 13:06
João Paulo Vani (João Paulo Vani)
João Paulo Vani (João Paulo Vani)
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Era fim de tarde quando, no último dia 12, data em que celebrava a própria vida, ela, anônima, passou pela calçada: sacola no ombro, suor no rosto, o olhar sem pressa e sem medo. Na praça, duas crianças brincavam de roda. Um senhor ajeitava a banca de livros usados. E, ainda assim, ela parecia deslocada — como se a cidade, mesmo acostumada à pressa, nunca tivesse aprendido a acolher sua presença.

Talvez fosse a pele, ou o cabelo. Ou o acúmulo de histórias que seu corpo carregava. Histórias que a cidade nunca quis ouvir.

Esse é o retrato da mulher negra no Brasil: uma presença silenciada. E é preciso dizer isso com todas as letras, sem meias-palavras nem eufemismos. Silenciada em casa, no trabalho, na escola, na política, na mídia. Não porque fale pouco — mas porque raramente é escutada.

Quando falam dela, quase sempre é com desdém ou condescendência. Quando falam por ela, é para medir sua dor, enquadrar sua força ou se apropriar de sua luta. Mas e quando a mulher negra fala?

Ela fala quando recusa o salário menor. Quando enfrenta, de cabeça erguida, o racismo disfarçado de piada. Ou quando insiste em entrar nos espaços onde tentam empurrá-la para os bastidores.

Nesta semana, o País perdeu uma dessas vozes. A morte de Preta Gil encerra não só a trajetória de uma cantora de presença luminosa, mas de uma mulher negra, famosa, que fez da existência um palanque contra a intolerância e denunciou violências. Com coragem, Preta falou de corpo, racismo, doença, amor e liberdade. Sua ausência não silencia o grito — só o reverbera.

Cada mulher negra que sobrevive é, por si só, um ato de resistência. E aqui, “sobreviver” não é metáfora: é atravessar uma sociedade que naturalizou sua exclusão, que a vê como força de trabalho, mas não como força de pensamento. Que a enxerga no noticiário policial, mas não nas colunas de opinião.

Não por acaso, a história nacional parece se esforçar para esquecer que essas mulheres sempre estiveram ali: na lavoura, na cozinha, nas ruas, nos movimentos sociais, na formação de saberes e afetos. Um esquecimento calculado — porque lembrar é reconhecer dívida.

E mesmo hoje, enquanto discursos sobre igualdade se espalham por redes e palanques, muitas ainda não têm acesso nem à própria voz. Há quem diga que o tempo cura, que as novas gerações são diferentes, que agora “todo mundo tem vez”. Mas isso é ilusão. O tempo talvez alivie a culpa de quem nunca sofreu — mas para quem carrega a ferida, ele somente cicatriza sem anestesia. E esse “ter vez”, quando ocorre, raramente é inteiro. Ter voz, então… é exceção. E o que resta?

Resta o gesto de olhar, escutar, garantir espaço — e compreender que não basta ser contra o racismo: é preciso enfrentá-lo. Resta o compromisso de não calar quando a violência é sutil — ou quando estampa a manchete do jornal.

A mulher negra não precisa de salvação. Precisa de dignidade. De ser vista além da dor, da resiliência, além do estereótipo. Precisa de políticas públicas que não sejam esmolas. De justiça que não se contente com a exceção. De memória que não a relegue à nota de rodapé.

Como todas, a anônima do dia 12 quer o que sempre foi seu: o direito de existir sem ter de justificar a própria existência. Enquanto isso, ela caminha. Sacola no ombro, suor no rosto, e o olhar que atravessa séculos. Sem pressa e sem medo, ela caminha.

E, ao caminhar, escreve, com os próprios passos, os nomes que não cabem mais no silêncio.

PROF. DR. JOÃO PAULO VANI

Presidente da Academia Brasileira de Escritores (Abresc), é pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da USP. Escreve quinzenalmente neste espaço aos sábados