O aborto e a malformação do embrião

O ser humano, em razão de sua própria natureza, guiado pela inteligência de que é dotado, esbarra frequentemente em fatos novos que introduzem conceitos e valores diferentes daqueles que originariamente registrou, desde sua infância até a idade madura. Isto porque a conceituação ética finca raízes profundas e dificilmente, numa primeira tentativa, possibilitará uma radical mudança de pensamento.
Assim pontuando, é interessante recordar que o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de se manifestar a respeito do abortamento de feto anencéfalo, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54). O Estado Democrático de Direito possibilita este compartilhamento da cidadania no julgamento. Ouvir todas as vozes favoráveis e contrárias é um instrumento eficaz para se realizar uma boa justiça. Afinal é do atrito das pedras que brota o fogo.
O Código Penal brasileiro, como é sabido, contempla somente duas hipóteses de abortamento. A primeira, para salvar a vida da gestante e a segunda proveniente de estupro. Em ambos os casos, há necessidade de comprovação das situações para justificar o ato do abortamento, sem, no entanto, qualquer exigência de deferimento judicial para o procedimento. Um tertium genus, em razão da decisão do Corte Maior, pretende se incorporar às causas permitidas. Inquestionavelmente, terá que ser elaborada a lei por parte do poder competente para operar o acréscimo pretendido.
Ocorre que, além da anencefalia, outras anomalias fetais, como a Síndrome de Body Stalk, Síndrome de Edwards, casos de gêmeos siameses toracoonfalópagos, unidos pelo mesmo tronco, e outras mais, ocorrem eventualmente e inviabilizam a vida extrauterina. O questionamento que se faz é se tem aplicação o entendimento da Suprema Corte com relação à anencefalia, exclusivamente.
A decisão proferida tem perfeita aplicação e se apresenta como um meridiano a ser seguido em todos os casos semelhantes. Se o feto é considerado uma spes vitae desde sua concepção, não há nenhum motivo para impedir o seu nascimento, uma vez que é detentor do direito à vida e não pode ser condenado no seu casulo intrauterino.
A própria legislação civil considera o embrião como um nascituro - que, na etimologia da palavra e no tempo verbal, com maior precisão, vem a significar aquele que vai nascer –, enquanto que o feto portador de uma doença que comprometa sua atividade encefálica, sem qualquer chance de vida fora do útero, não carrega tal garantia. O Supremo Tribunal Federal, dessa forma, definiu que a vida em potencial se inicia somente com a concepção.
Trata-se, na realidade, de uma situação acobertada pela hermenêutica, que conta com a analogia para encontrar uma integração jurídica que seja consistente e que possibilite aplicar um entendimento jurisprudencial da Corte Suprema a uma situação semelhante a um novo caso concreto que se apresenta. A Hermenêutica, instrumento interpretativo da mens legis, é encarregada, não só de direcionar o texto jurisprudencial, como, também, ampliá-lo para que possa atender a outras necessidades que guardam certa semelhança ou analogia com o fato apresentado.
E na sequência de tal entendimento, o anteprojeto de lei que propõe a reforma do Código Penal inseriu, taxativamente, de forma ampliativa, a seguinte cláusula de exclusão de ilicitude no inciso III do artigo 128 do Código Penal, de aborto praticado por médico, in verbis: “Quando há fundada probabilidade, atestada por dois outros médicos, de o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais”.
EUDES QUINTINO DE OLIVEIRA JÚNIOR
Promotor de justiça aposentado, advogado, membro da Arlec. Escreve quinzenalmente neste espaço aos sábados