O direito de desaparecer
Desaparecer, não no sentido de anular-se, mas como gesto ontológico, é um ato herético. Não há gurus nem aplicativos para isso

Contra o delírio do desempenho, cabe, no tempo de existir, os vãos. A versão escravagista da consciência criou a necessidade de otimizar a vida, monetizar afetos e oferecer ao mercado uma versão rentável de si. O ser coisificado precisa produzir, aparecer, ser desejável e desejante. Pior do que ter de ser é ter de parecer ser. Trabalhar e amar não bastam.
A construção social de “necessidade” sequestrou a soberania do ser e pensar. A hiperexposição, produto do condicionamento às leis mercadológicas da dependência psíquica e material, exige respirações produtivas. O sorriso requer curadoria e as trivialidades cotidianas, compartilhamento. Cada instante deve ser capitalizável e convertido em conteúdo publicável. Todo espaço deve ser instagramável.
A indústria do bem-estar vende a ideia de que o corpo, tempo, vida e morte são controláveis e oferece soluções mágicas para ser melhor e obter sucesso. Nessa arquitetura opressiva, o sujeito performático e exausto ignora a impossibilidade de estar disponível, emocional e digitalmente, o tempo todo. O cansaço da alma não se resolve com descanso.
Vozes ancestrais se erguem como escândalo e antídoto. Diógenes, o Cínico, denunciava a obscenidade da servidão voluntária às necessidades artificiais. Seu conceito radical de liberdade preconizava: “Quanto menos preciso, menos sou possuído”. Para Epicuro, o prazer supremo era a ataraxia, isto é, a serenidade da alma. Para o filósofo, o condutor da felicidade não é o excesso sacralizado, mas a suficiência. Desejar sem fim é padecer sem trégua.
A contracultura do sobejo rejeita a tirania da visibilidade compulsória. A subversão reside no exercício do direito de desejar menos e ser inaproveitável aos propósitos das gigantes tecnológicas. Os subversivos modernos preferem desaparecer da cena espetacularizada. Em vez de aprenderem a conquistar mais, reaprendem a abdicar. O sujeito pensante não se ilude, emancipa-se. Compreende que o verdadeiro prazer não reside na acumulação e ostentação, mas na contemplação, nas amizades e ausência de inquietações inúteis.
Os estoicos legaram ao mundo o conceito de apatheia. Não no sentido moderno de apatia, mas de liberdade psíquica adquirida, no reconhecimento de que há coisas que dependem de nós, nossos juízos, caráter e outras, não. Na visão estoica, ninguém precisa estar à altura de todas as expectativas. Nem mesmo das próprias vontades.
Num mundo onde o silêncio e a espiritualidade são mercadorias, o corpo e as dores, precificados, desejar menos e ser desútil é quase obsceno. Desaparecer, não no sentido de anular-se, mas como gesto ontológico, é um ato herético. Não há gurus nem aplicativos para isso. Apenas a arqueologia interior é capaz de resgatar a liberdade de ser sem ter nada a provar a ninguém.
A vida sem script é uma peça de resistência, um artefato do pensamento ético e estético, e uma ameaça à economia. Não responder ao “esperado”, mas ao “essencial” é redefinir a existência, mesmo que isso pareça insano aos olhos do mundo. Nesse contexto, desaparecer não é fuga, mas o exercício soberano do direito de não se reduzir à mercadoria.
No mercado das almas, ser inaproveitável é o último luxo.
MARA LÚCIA MADUREIRA
Psicóloga Cognitivo-comportamental em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às quintas-feiras