Os limites do judiciário
A Constituição não é apenas um documento simbólico, é um instrumento vital que limita o poder do Estado e protege os direitos individuais

Nos últimos dias, diversos textos, artigos e editoriais de grandes jornais têm clamado por um retorno do STF aos seus “limites normais”, após as condenações relacionadas à tentativa de golpe. Nas entrelinhas, sugere-se que o tribunal teria agido com excessos. Daí surgem questões que merecem uma análise mais aprofundada.
Primeiramente, teria realmente o STF agido com excesso? O papel do STF, como guardião da Constituição, é garantir que as normas e princípios que regem a sociedade sejam respeitados. Em um Estado de Direito, decisões judiciais devem ser pautadas pela legalidade e pela Constituição. Portanto, se as ações do STF visaram proteger a ordem democrática e os direitos fundamentais, os autores dos textos não podem trabalhar com a ideia de que, em determinadas situações, seria legítimo ao Poder Judiciário agir com excesso no exercício de suas funções.
Ademais, os artigos ignoram um ponto crucial: é possível julgar, condenar e prender pessoas sem que o Judiciário atue dentro das regras estabelecidas? A resposta é um enfático não. O Estado de Direito se fundamenta na ideia de que todos, inclusive os que estão no poder, se sujeitam à lei. A quebra de regras, mesmo em nome de uma “boa causa”, ameaçaria os alicerces da democracia e do respeito às instituições.
E outra: quando e quais regras poderiam ser quebradas? Quem teria a autoridade para definir as exceções? A história já nos mostrou que a flexibilização das normas em nome de interesses supostamente maiores frequentemente resulta em abusos de poder e violações de direitos. A permissão de que se possa extrapolar as regras se tornaria um campo minado, onde a arbitrariedade poderia prevalecer sobre a justiça.
O constitucionalismo surgiu principalmente da limitação do poder do Estado sobre os indivíduos, por meio de regras pré-estabelecidas, independentemente da vontade do detentor do poder. O Estado de Direito é uma proteção ao cidadão. O princípio da legalidade prevê que ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de Lei. Assim, a atuação do Estado, em todas as suas esferas, deve estar sempre pautada por normas claras e previamente estabelecidas. A Constituição não é apenas um documento simbólico, é um instrumento vital que limita o poder do Estado e protege os direitos individuais.
Não se questiona aqui o papel ou a atuação do STF. As decisões estão postas e estão sendo cumpridas. O objetivo é refletir sobre a posição dos articulistas que argumentam que as regras poderiam ser quebradas em nome de uma “boa causa”. Essa linha de raciocínio é perigosa e pode abrir precedentes que, a longo prazo, prejudicam o próprio tecido da sociedade. O respeito às regras não é um obstáculo à justiça; pelo contrário, é o que garante que a justiça seja efetiva e imparcial. A defesa de uma atuação judicial fora dos limites, mesmo que em nome de causas nobres, pode resultar em um retrocesso democrático e no desmantelamento das garantias que hoje protegemos. O equilíbrio entre a justiça e a legalidade é uma tarefa coletiva.
SÉRGIO CLEMENTINO
Promotor de Justiça em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às terças-feiras