Diário da Região
PAINEL DE IDEIAS

PANÓPTICO DIGITAL

por Mara Lúcia Madureira
Publicado há 20 horasAtualizado há 8 horas
Mara Lúcia Madureira (Mara Lúcia Madureira)
Mara Lúcia Madureira (Mara Lúcia Madureira)
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No século XVIII, Jeremy Bentham concebeu o panóptico, modelo prisional no qual o vigilante vê todos os detentos sem que estes saibam quando estão sendo observados. Em 1975, Michel Foucault expandiu o conceito para descrever o poder da vigilância e controle em diversas instituições sociais, nas quais o indivíduo é qualificado e sancionado continuamente. George Orwell, na obra “1984” (1949), antecipou um mundo governado pelo olhar onipresente do Grande Irmão. Gestos e pensamentos eram monitorados por teletelas. O Partido controlava os corpos e as narrativas, reescrevia a história e moldava a percepção da realidade.

Hoje, mercado e política controlam o panóptico digital. O monitoramento contínuo é a base de um dos maiores formatos de negócio. As big techs coletam dados e os governos os utilizam para controle das massas. Redes sociais rastreiam localização, preferências e interações e os algoritmos direcionam conteúdos, reforçam crenças, silenciam vozes e constroem realidades personalizadas. A suposta liberdade de expressão organiza narrativas e desejos segundo interesses de consumo e manipulação.

Dispositivos vestíveis (pulseiras, relógios, óculos e acessórios incorporados em roupas) monitoram sinais vitais, capturam dados sobre a saúde, sono e deslocamento. Microfones e câmeras captam conversas privadas e imagens sem consentimento. Os aparentes benefícios são armadilhas - naturalizam o controle invisível e a erosão da autonomia.

Por um lado, a oferta de segurança, agilidade em serviços, conveniências domésticas, monitoramento de doenças crônicas, etc., por outro, seguradoras, bancos e varejistas utilizam dados de saúde para ajustar preços e riscos, liberar ou negar créditos e promover vendas. Padrões de sono e humor são explorados para oferecer produtos quando a pessoa está vulnerável. Campanhas eleitorais utilizam a fragilidade emocional para influenciar votos (ex.: escândalo Cambridge Analytica).

Corpo e mente se tornaram bancos de dados. A biometria e a íris, símbolos da identidade única, se converteram em chaves. A lógica dos “serviços gratuitos” é simples: o que não se paga com dinheiro, paga-se com dados, o novo petróleo digital da economia preditiva. Regimes autoritários controlam e punem os cidadãos por atos ou opiniões divergentes. Todos estão suscetíveis a crimes cibernéticos por vazamentos de dados biométricos, conversas e imagens íntimas.

O uso da inteligência artificial (IA) constitui grandes dilemas éticos e políticos. Se nas democracias, as IAs são ferramentas de eficiência, nos regimes ditatoriais representam um arsenal invisível de poder e controle, precedentes. Qualquer anonimato pode ser neutralizado. A manipulação psicológica e social se dá por meio da propaganda personalizada e exploração da vulnerabilidade. A censura inteligente filtra a circulação de conteúdos nas redes. O controle narrativo manipula resultados de busca, moldam a percepção da realidade e eliminam vozes dissidentes.

A consolidação do poder cria a ilusão de ordem e segurança à custa da liberdade. A expansão internacional de regimes autocráticos exporta tecnologias de vigilância e fortalece alianças autoritárias. O fim do direito à privacidade possibilita a criminalização do pensamento crítico e a detecção da dissidência antes de ser expressa. O medo da vigilância gera autocensura, supressão da criatividade e da liberdade acadêmica. A adoção de tais mecanismos e a abolição das fronteiras entre o público e privado aproximam democracias frágeis de regimes autoritários.

A consciência exige regulações legais de proteção à privacidade, redução da exposição voluntária em redes sociais e aplicativos, e a imposição de limites éticos. A comodidade tem preço.

MARA LÚCIA MADUREIRA

Psicóloga Cognitivo-comportamental em Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às quintas-feiras