Diário da Região
PAINEL DE IDEIAS

Primitivos, primitivistas

Os enunciados naïfs diferem-se internamente em duas direções: o primitivismo e ingenuidade dos conceitos, e o primitivismo das formas de expressão dos conceitos

por Romildo Sant'Anna
Publicado em 21/06/2025 às 13:24Atualizado em 22/06/2025 às 07:38
Romildo Sant’Anna (Divulgação)
Romildo Sant’Anna (Divulgação)
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Junto aos pesquisadores Marinilda Boulay, Antonio do Nascimento e Percival Tirapeli participei da curadoria da Mostra Internacional Totem das Cores (2024), com foco nas artes naïfs. Outra grandiosa ação cultural da Prefeitura de Socorro, SP. Além da adesão de criadores nacionais de vários estados, participaram, de outros países, artistas da Itália, Bulgária, França, México, Bélgica, Portugal, Cuba, Romênia, EUA e Chile. Juntava-se na mesma exposição a multiplicidade de formas, cores e sentimentos.

A validação das artes naïfs por setores sociais integrados se deu na segunda metade do Século XIX. Ecoavam-se ideias das Conferências Socialistas a propugnarem igualdade e a dignidade dos exclusos. Naqueles anos, países europeus viviam impactos da perda de identidade etnocultural devido a efeitos do que se chamaria “globalização”. Indagavam-se: Onde a França mais se manifesta em seus símbolos ancestrais? Perceberam-se nos recantos proletários, remotos, excelentes artistas. Batizaram-nos como naïfs (ingênuos), criadores autodidatas, espontâneos, alheios a “escolas” e “movimentos”. Sequer percebiam-se importantes, artistas.

Os visitantes da Mostra decerto impactaram-se ao contemplarem o conjunto de obras de criadores nacionais misturado ao conjunto de expressões artísticas de outras nações. Diferenças foram sentidas, ativaram ímpetos comparativos.

Com agudeza crítica se notam disparidades entre os “primitivos” (plenamente instintivos) e os “primitivistas”, ou seja, criadores cerebrais e tecnicamente mais proficientes, a produzirem obras como se fossem primitivos. Não são, de fato, espontâneos, simplórios; realizam simulacros, variantes estilísticas. E, como nas artes de todos os tempos, os artistas não falam das coisas, nem mesmo de si mesmos, mas dos conceitos que fazem das coisas e de si mesmos, os enunciados naïfs diferem-se internamente em duas direções: o primitivismo e ingenuidade dos conceitos, e o primitivismo das formas de expressão dos conceitos.

Ao visualizarmos um naïf europeu ao lado de um brasileiro surgem disjunções ilusórias. O Velho Mundo acumula o “inconsciente coletivo” herdeiro de processos evolutivos milenares. Refletem-se no repertório temático e padrões inventivos. Fazem-no “adiantado” em relação ao Novo Mundo. No universo luso-tropical perduram rudimentos rurais, “atrasados”, fatalistas, adestrados pelo colonialismo a reproduzir mecanismos vivos de dominação sociopolítica. Do lado europeu, o naïf é instruído pelo convívio cotidiano com as artes; do nacional, é isolado, tosco nas aparências. São mundos conflitantes inda que exprimam o elo vital: Arte é imitação do humano, a essência do que somos. Que arte é mais naïf, primitiva? Talvez a nacional. Mas é irrelevante. Nas artes, repito, sejam quais forem, germinam as seivas que nos unem, o prodígio de sermos.

ROMILDO SANT’ANNA

Crítico de arte e jornalista. Livre-docente pela Unesp, é membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura (Arlec). Escreve quinzenalmente neste espaço aos domingos