Diário da Região
PAINEL DE IDEIAS

Singularidades

Tudo isso tem me deixado vazia de palavras, assim como, a falta de chuva, incêndios devastadores e outros desastres naturais provocados pela rebelião da natureza por vir sendo continuamente violentada

por Merli Diniz
Publicado em 01/10/2025 às 20:31Atualizado em 02/10/2025 às 10:38
Merli Diniz (Merli Diniz)
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Há horas olho para uma folha pálida, retângulo desbotado de papel, no intento de preenchê-la, mas nada. Nada! Apenas uma página em branco.

Começo a devanear, passeio pela Mantiqueira, viajo por ipês para me animar ou pelo menos para preencher de cores este espaço frio, isento de vida, asséptico. Imagino a lua no mar, ondas verde-água, praia deserta, tudo isso na tentativa de traçar rabiscos no quarado leitoso do papel inerte. Inutilmente!

Diante desse estado d’alma, mergulho num mar nostálgico de sentimentos intensos e doloridos. Seria a lembrança de pessoas queridas que se foram? Ocorre-me que poderia ser também pela dicotomia nas relações humanas reinantes no País, com o costumeiro rótulo negativo às pessoas que têm visões políticas e ideológicas diversas no modo de ver o mundo. O desrespeito com quem é ou pensa diferente tem sido estarrecedor. Por incrível que pareça, recuamos aos tempos medievais, época terrível em que a pessoa canhota era estigmatizada por preconceito social, cultural e religioso. Ser canhoto era motivo suficiente para condenar alguém por feitiçaria, mas como sempre, as mulheres eram as mais perseguidas e condenadas. Lamentável que tais ocorrências se devessem aos interesses dos que tinham poder político-religioso e se servissem disso para manutenção do status quo; deplorável que tal entendimento equivocado permaneça entre nós, com a mesma finalidade. Por tudo isso, fico sem graça, como as crianças quando lhes roubam o doce preferido.

Considero ainda outras possibilidades: não bastasse a brutalidade digital, o aumento da violência física, mulheres sendo mortas a torto e a direito por homens que se acham proprietários do corpo e das vontades femininas. E a caça às bruxas, vivenciada pelos moradores de rua? Nada me parece ter mudado, apesar de terem se passado aproximadamente dois mil anos D.C.

Tudo isso tem me deixado vazia de palavras, assim como, a falta de chuva, incêndios devastadores e outros desastres naturais provocados pela rebelião da natureza por vir sendo continuamente violentada.

Imersa nessas reflexões, olho para a persiana marrom desbotado ou bege encardido, não dá para precisar, mas, de qualquer maneira de uma cor triste. Percebo a luz que tenta se infiltrar pela sala, no esforço de vencer o tecido grosseiro e de mau gosto.

Corro então a liberar a entrada do sol. Ainda bem que ele brilha lá fora e a luz intensa do dia azul-claro, se derrama sobre a cidade e aquece, embora com um certo exagero, os primeiros dias da estação primaveril. Começo a ficar mais animada, creio que o suficiente para desenhar minhas letras para que meus leitores continuem sendo meus leitores.

Vazada pela luz da manhã quente de primavera, a tela aquosa vertida em riscos e rabiscos espalhados de forma desordenada, consigo vencer a letargia inicial e deixar sentimentos grafados em negro.

Enfim, domei o nada, apropriei-me novamente da generosidade da vida que em sua assimetria nos oferece possibilidades de diferentes momentos e enfrentamentos, nem sempre belos. Mas intensamente verdadeiros.

MERLI DINIZ

Professora, advogada, poeta e cronista. Vice coordenadora da Comissão de Direito e Literatura da 22ªSubseção da OAB Rio Preto. Escreve quinzenalmente neste espaço às quintas-feiras